MPF acusa Roche de vender remédios para câncer a preço abusivo
A atuação do laboratório virou alvo de apuração do MPF no Distrito Federal em março de 2015, a partir de representação feita pelo Grupo Direito e Pobreza da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. As investigações preliminares revelaram que a Roche é a detentora das patentes relacionadas ao trastuzumabe desde 2008 e que o direito de exclusividade só vai expirar em 2028. Mostraram ainda que, em 2012, após aprovação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias do SUS, o medicamento foi incluído na lista de produtos fornecidos pelo Estado para o tratamento de câncer de mama inicial e para os chamados casos “localmente avançados”. Nas situações em que o paciente já apresenta metástase, o fornecimento na rede pública só é feito a partir de ordens judiciais – que não são poucas, dada a eficiência do produto e o drama de pacientes em estado grave.
Na ação, os investigadores explicam que a prática irregular começou ainda em 2012, logo após a inclusão do medicamento na lista do SUS. Embora mantenha contratos junto ao Ministério da Saúde para fornecer, de forma centralizada, o produto, a empresa cobra valores diferenciados quando o pedido parte de uma secretaria estadual. Em um dos trechos do documento enviado à Justiça, os procuradores frisam que o valor médio é de R$ 7.192,00 quando os compradores são as secretarias e de R$ 3.423.20, quando o produto se destina ao MS. “A prática adotada pela Roche representa maximização arbitrária de lucros, o que viola a ordem econômica e causa dano ao patrimônio público da saúde, já que a verba utilizada pelas secretarias de Saúde para a aquisição do medicamento – importantíssimo para o tratamento do câncer de mama –, é também oriunda do Fundo Nacional de Saúde (FNS), repassada ao SUS, em cada esfera de governo”, resumem os investigadores.
Produto caro
Registrado na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em 1999, o trastuzumabe é um medicamento extremamente caro, sendo responsável por uma fatia considerável do faturamento mundial do laboratório. A estimativa é que, em 2016, as vendas do produto atinjam a impressionante cifra de U$ 6,5 bilhões. No Brasil, dados do Departamento de Assistência Farmacêutica e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde revelam que, apenas em 2014, a União gastou R$ 530,7 milhões para fornecer o medicamento a pacientes da rede pública. O total não inclui as compras avulsas, feitas pelas secretarias estaduais. Ainda de acordo com informações do MS, o medicamento era fornecido a 4.806 pessoas no segundo trimestre do ano passado.
Como, em função das regras de propriedade industrial, apenas o laboratório Roche pode fornecer o produto, o governo brasileiro estabeleceu, desde 2012, quatro contratos com a empresa. Na ação, os procuradores lembram que a opção de comprar de forma centralizada teve como objetivos principais garantir o abastecimento regular do medicamento nos hospitais e, consequentemente, o acesso dos pacientes à medicação, além de reduzir os custos. Frisam ainda que, graças às negociações, o valor de um grama saiu de R$ 7,78, em 2012, para R$ 6,80 em 2014. Na contramão desse quadro, o preço cobrado nas aquisições avulsas (feitas pelas secretarias) atingiu R$ 21,70 por grama.
Outro aspecto mencionado na ação enviada para apreciação judicial foi o fato de o laboratório praticar preços diferenciados para aquisições feitas por diferentes unidades da federação e até mesmo por uma mesma secretaria de saúde, como ocorreu em 2013 em Pernambuco. Os procuradores destacam ainda a falta de resposta consistente por parte do laboratório para justificar os valores cobrados. Ao ser questionada pelo MPF, a empresa alegou, entre outros fatores, que o preço seguia a lógica de mercado e que era obrigada a suportar a inadimplência frequente dos estados. Em relação à inadimplência, o argumento foi rebatido pelo MPF a partir do resultado de uma pesquisa que mostrou a existência de apenas três ações de cobrança propostas pela Roche frente aos órgãos públicos estaduais e municipais.
Ao longo das 93 páginas da ação civil pública, os procuradores abordam e detalham outros aspectos como as regras a serem seguidas na concessão e exploração de uma patente que, conforme explicam atribuem ao titular desse direito a obrigação de manter o mercado abastecido e de praticar preços concorrenciais. “Assim, é possível notar que a consequência do descumprimento desse tipo de regra é justamente o rompimento do monopólio por meio do licenciamento compulsório em favor de concorrentes”. Os investigadores também mencionam a existência de auditoria do Tribunal de contas União (TCU) que comprovou abusos e sobrepreços nos processos de compra de medicamentos fornecidos pelo Sistema Único de Saúde, inclusive no caso específico do trastuzumabe. Os estudos técnicos relevaram, por exemplo, que o preço praticado no Brasil era 65% mais alto que o registrado no mercado internacional.
Providências solicitadas
Além da liminar, cujo objetivo é garantir a equiparação imediata dos preços cobrados dos órgãos estaduais com o nacional, os procuradores propõem na ação que, antes do julgamento do mérito, seja tentado o caminho da conciliação. Para isso, pedem que seja designada audiência, quando o Laboratório Roche deverá se manifestar sobre a possibilidade de adotar “voluntariamente a conduta de equalização de preços de venda do medicamento a todos os órgãos do poder público e, reconhecendo os erros cometidos, reparar, em patamar razoável, os danos já causados ao patrimônio do SUS”. Em caso de acordo, frisam os autores da ação, poderia ser evitada a continuidade do processo, sobretudo, na parte em que é solicitado olicenciamento compulsório do medicamento. Adotada em casos extremos, a medida permite que um produto patenteado passe a ser fabricado por outras empresas.
No caso do trastuzumabe, os procuradores pedem que – caso a conciliação não seja concretizada – a Justiça determine que a União declare o interesse público na fabricação do medicamento e que o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) tome as providências necessárias para liberar a patente e,consequentemente, a produção do fármaco pelo poder público, inclusive com a importação paralela do medicamento ou de matéria prima. Se isso acontecer, o remédio passará a ser produzido também peloInstituto Vital Brazil e pelo Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos da Fiocruz. Como parte do acordo entre o governo brasileiro e a Roche, os dois laboratórios já recebem treinamento via transferência de tecnologia para assumir a produção, o que deveria acontecer apenas após o fim da patente.