O mistério de Hatshepsut, a faraó ‘apagada da história’
Era uma vez um dos reinados mais formidáveis e exitosos do mundo antigo mas que, por mais de dois milênios, ninguém soube quem ocupou seu trono.
A história daquele faraó do século 15 a.C. só foi revelada perto do início do século 20, quando a decodificação de hieróglifos permitiu a leitura de inscrições que haviam sobrevivido a ataques em um passado remoto.
As imagens haviam sofrido “quase todas as indignidades imagináveis”, escreveu Herbert Winlock (1884-1950), chefe da equipe arqueológica do Museu Metropolitan, nos Estados Unidos, que descobriu os destroços no grande complexo de templos e tumbas de Deir El-Bahari, no Egito.
A destruição era especialmente significativa porque, para os egípcios antigos, a morte era apenas um passo na estrada para uma vida eterna e feliz. O espírito poderia viver além do túmulo, mas apenas se houvesse alguma memória (um corpo, uma estátua ou pelo menos um nome) do falecido na terra dos vivos.
Com a profanação de monumentos em sua homenagem, os sinais mostravam que aquele faraó havia sido amaldiçoado com uma morte sem fim. Mas por quê?
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Para os egiptólogos da geração de Winlock, a história por trás disto era a de uma mulher “usurpadora do tipo mais vil” que foi retaliada por um faraó depois da morte dela.
Mas pesquisadores mais recentes têm uma versão mais “final feliz” do que essa.
Arranjos para preservar linhagem real
As estátuas profanadas eram de um dos faraós mais bem-sucedidos, influentes e longevos (1479-1458 a.C.) do Egito antigo. Na verdade, se tratava de uma mulher — uma das poucas a governar aquela grande civilização, e por um período equiparável ao reinado de Cleópatra, que posteriormente governaria por cerca de 20 anos.
Seu nome era Hatshepsut, que significa “a mais importante das nobres damas”. Ela era uma princesa real, filha da rainha Amósis e do rei Tutemés I, um general famoso por lendárias batalhas militares.
O casal não tinha um herdeiro homem, mas havia uma opção aceitável: o príncipe Tutemés, filho de uma respeitada rainha secundária.
Para proteger a linhagem real, o rei ordenou que Hatshepsut e o príncipe se casassem. Quando Tutemés I “descansou da vida”, os meio-irmãos herdaram o trono.
Entretanto, cerca de três anos após a coroação, Tutemés II adoeceu e morreu, e o único sucessor homem disponível era o filho pequeno de uma mulher de nível mais baixo de seu harém.
Embora não fosse incomum que mães assumissem o poder se os faraós fossem muito novos para governar, a de Tutemés III não tinha preparação para isso.
Então Hatshepsut, a rainha viúva, tornou-se regente em nome do seu enteado ou sobrinho.
As imagens da época retratam Tutemés como um faraó adulto — embora na realidade mal tivesse aprendido a andar — ao lado de Hatshepsut, que estava na casa dos 20 anos, vestida de rainha e com uma postura recatada.
De regente a faraó
Anos depois, por algum motivo desconhecido, Hatshepsut tornou-se faraó.
E aí há uma grande incógnita.
Legalmente, não havia proibição para uma mulher governar o Egito. Embora o faraó ideal fosse um homem — e se possível bonito, atlético, corajoso, piedoso e sábio —, às vezes era tolerado que uma mulher assumisse, assim como mães substituindo filhos pequenos ou rainhas no lugar de maridos ausentes, no campo de batalha.
Mas, neste caso, o que aconteceu foi uma regente assumir essa posição de poder apesar da existência de um faraó.
Infelizmente, nos registros existentes, não há nada que explique completamente essa ascensão tão surpreendente.
Arqueólogos do início do século 20 argumentavam que ela era uma mulher vaidosa e ambiciosa que não se contentou com um papel secundário e tirou a coroa da criança que a usava legitimamente. As profanações de homenagens a ela seriam uma reprovação a essa má conduta.
Mas evidências arqueológicas revelam que, na verdade, a maior parte da destruição começou cerca de 20 anos após a ascensão de Tutemés III ao trono, e parte da profanação foi comandada pelo filho deste — quando a maioria daqueles que conviveram com Hatshepsut também tinham morrido.
Ao que tudo indica hoje, a rainha nunca depôs seu enteado, não tirou seu título de faraó, nem mesmo o escondeu. Nas imagens, eles sempre apareceram lado a lado, às vezes até como gêmeos.
E mais: “a usurpadora do tipo mais vil”, como chegou a ser chamada, poderia ter facilmente se livrado do jovem se quisesse, como tantos reis fizeram com rivais ao longo da história. Hatshepsut não só não o matou nem o exilou, como também se certificou de que Tutemés III estivesse preparado para o papel ao qual estava destinado.
Ele foi educado como escriba e sacerdote e mais tarde entrou no exército. Quando sua madrasta morreu, ele havia já havia chegado ao posto de comandante-chefe e participado de uma campanha vitoriosa na região do Levante.
O que pode ter surgido foi uma co-regência, ou um reinado conjunto, algo que já havia sido feito em dinastias anteriores.
Nesta versão, especialistas sugerem que alguma ameaça à estabilidade do Egito levou Hatshepsut a se declarar rainha — o que pode ter resguardado não só o seu poder, mas o status quo de todos os poderosos daquela sociedade.
E ela provavelmente tinha o apoio dos poderosos — do contrário, seu reinado não teria sido tão próspero e pacífico.
Na verdade, seu sucesso é curiosamente uma das possíveis razões pelas quais Tutemés III queria — e podia — desaparecer por um tempo.
Depois, Tutemés III ficou conhecido como um dos grandes faraós do Egito — por direito próprio e, por um período, possivelmente por empréstimo das habilidades e conquistas da madrasta.
‘Aquela que sairá vitoriosa’
Imagens e hieróglifos, indicam que Hatshepsut não só assumiu o trono como o fez de forma magistral.
Em um reino onde a quase totalidade dos indivíduos não sabia ler, mensagens visuais eram muito importantes — e, para Hatshepsut, sua imagem sofreu uma metamorfose espetacular.
Nos desenhos e estátuas, ela passou a aparecer com as roupas e acessórios típicos de um faraó, desde a coroa perfeita até a barba postiça, considerada um atributo divino dos deuses.
Inclusive, a representação de seu corpo tornou-se cada vez mais masculina, aproximando-a do estereótipo de um rei.
Porém, sua intenção era projetar-se como líder, não como homem — prova disso é que suas imagens quase sempre contêm símbolos representando seu verdadeiro gênero, o que inicialmente confundiu os egiptólogos.
Como outros faraós, Hatshepsut foi uma comandante militar, liderando as tropas em pelo menos duas ocasiões. Os textos a descrevem como uma conquistadora: “Aquela que sairá vitoriosa, ardendo contra seus inimigos”.
No entanto, esse não foi seu papel mais proeminente.
Embora ela tenha defendido as fronteiras, logo após chegar ao trono, seu reinado foi pacífico e reafirmou o poder egípcio com outras armas: a diplomacia e o desenvolvimento do comércio internacional com lugares conhecidos, e outros fabulosos.
Entre eles, nada menos que a misteriosa Terra de Punt, um lugar que desapareceu sem deixar vestígios além do que está em inscrições e desenhos. Até hoje, não há certeza sobre sua localização exata — há possibilidades, mas não provas.
O que se sabe é que o lugar existiu, e uma das mais belas provas disso é o retrato de uma expedição patrocinada por Hatshepsut, na qual seus navios zarparam carregados de valiosos bens, como miçangas, pulseiras, armas de metal, e voltaram cheios de tesouros extraordinários.
Os súditos do faraó que se aglomeraram na costa viram um desfile esplêndido de madeiras preciosas, fragrâncias, anéis de ouro, pedras semipreciosas, marfim, peles de animais e penas de pássaros, bem como uma coleção de animais exóticos, incluindo macacos, panteras e girafas.
Entre todas essas maravilhas, a mais preciosa era a mirra, que os navegantes traziam processada, em resina, para ser usada em rituais nos templos, na mumificação e na fabricação de perfumes.
A própria Hatshepsut usava óleo perfumado de mirra em sua pele.
Como se não bastasse, a expedição trouxe 31 árvores de mirra, plantadas nos jardins do templo funerário de Deir El-Bahari, um dos mais belos monumentos da era dinástica.
Rainha deixou suas próprias marcas
Sabemos os detalhes sobre a fabulosa expedição graças a inscrições e imagens gravadas nas paredes deste templo.
Foi lá, aliás, que arqueólogos encontraram pela primeira vez evidências da tentativa de apagar Hatshepsut da história.
Um dos indícios dessa tentativa é o fato de que seu nome não consta em nenhuma das listas de reis: depois de Tutemés II, vem Tutemés III.
Mas, juntando diferentes vestígios — muitos em forma de monumentos, embora danificados —, egiptólogos conseguiram recriar parte do reinado dela.
Existem vestígios de Hatshepsut não apenas em Deir El-Bahari, mas em muitas outras construções erguidas durante seu reinado, durante o qual foram levantados e reformados templos e santuários do Sinai à Núbia, como a Capela Vermelha; dois pares de obeliscos no complexo de templos de Karnak; e o templo de Pajet, escavado na pedra em Beni Hasan.
Ela também deixou centenas de estátuas de si mesma, bem como seus pensamentos e relatos de sua história — real ou fantasiada — inscritos em pedra.