O transexual que desafiou o puritanismo do século 19, se divertiu na Era Vitoriana e agora é tema de peça em Londres

Holly Williams

Ernest Boulton
Boulton (à esquerda) atingiria o estrelato em palcos americanos

Se você estivesse sentado em uma das cadeiras do Teatro Royal Strand em uma noite de abril de 1870, poderia ter notado uma moça trajando um vestido de seda de decote baixo, divertindo-se em um dos camarotes antes de se dirigir ao banheiro feminino. Se tivesse olhado um pouco mais de perto, perceberia que se tratava, na verdade, de um homem de 22 anos chamado Ernest Boulton.

Mas que atendia pelo nome de Stella.

Se a pergunta sobre a qual gênero você precisa pertencer para usar qual banheiro ainda é capaz de causar furor nos dias de hoje – basta lembrar a polêmica causada nos EUA por legislação aprovada pelo estado da Carolina do Norte para reger as escolhas de transexuais -, na Era Vitoriana britânica seria um escândalo ver um homem entrando na porta com a placa “damas”.

Na saída do teatro, Stella e sua colega transexual Fanny foram presas, sob a acusação de sodomia. Felizmente, Stella foi absolvida e aproveitou a segunda chance para pintar o cabelo de loiro, se mudar para os EUA e se tornar uma famosa e reverenciada artista transformista.

Ernest e Park
Ernest e Park (“Fanny”) foram presos sob a acusação de sodomia

Essa fantástica história está sendo contada em uma nova peça de Neil Bartlett. O público conhece Ernest Boulton tanto como uma famosa drag queen quanto como o homem que morreu em um hospital em 1904.

Bartlett descobriu Stella em 1983, quando escrevia um livro sobre a história da homossexualidade no Reino Unido. Aos 56 anos, a mesma idade com que Stella morreu, ele está bem menos impressionado pelo sucesso da carreira da transformista do que por sua trajetória de coragem.

Parece ser o momento ideal para Stella voltar para os holofotes. Nos últimos anos, transexuais ganharam muito mais visibilidade e um deles, Caitlyn Jenner, até recebeu prêmios nos EUA. O filme A Garota Dinamarquesa foi indicado para quatro Oscars e venceu na categoria de atriz coadjuvante com Alicia Vikander.

“Pessoas transgênero estão nos fazendo perceber cada vez mais que classificações de gênero são imprecisas e inúteis. É como se houvesse tantos gêneros como pessoas. Podemos ver a história de Stella sob um novo ângulo. Para ela, a identidade nunca foi um destino, mas sim uma constante transformação”, afirma Bartlett.

Stella apareceu no tribunal em sua forma masculina
Stella apareceu no tribunal em sua forma masculina

Mas Stella estava envolvida em prostituição, então como foi que escapou de uma punição da lei em uma época puritana com a Vitoriana?

Ela foi salva por um advogado astuto e pela completa incredulidade do público: as pessoas não conseguiam acreditar que alguém fosse tão abertamente gay. O advogado convenceu o júri de que Ernest Boulton era apenas um homem extrovertido e com um gosto para o teatro amador. E que nenhum sodomita seria tão ousado a ponto de se expor andando de vestido pelo West End londrino.

Bartlett também quis contar a história de Stella porque, ao contrário de muitas narrativas que incluem uma vida difícil para homossexuais, a história dela é de boa sorte e diversão. Ela foi perseguida pelos tabloides britânicos, que apelidaram a ela e Fanny de “Madames Ele-Ela”. O julgamento foi um circo. “Mas ela não se abateu. Menos de um ano depois, já estava aparecendo na Broadway”, conta o dramaturgo.

Descobrir mais sobre a vida de Stella não foi uma missão fácil: ela conseguia mudar de identidade de acordo com o gosto de amantes e clientes. Os testemunhos no julgamento pareciam falar de várias pessoas. Havia Ernest Boulton, o homem de classe média que vivia no bairro londrino de Maida Vale, e que apareceu no tribunal usando roupas masculinas e mesmo um bigode. Mas havia também o Ernest que andava pelas ruas do West End vestindo miniblusas e calças apertadas.

Peça levou três anos para ser escrita
Peça levou três anos para ser escrita

Mas também havia surpresas: Ernest também era Lady Stella Pelham Clinton, que vivia como a mulher de um deputado do Partido Conservador, lorde Arhtur Pelham, dividindo um apartamento com ele perto da famosa avenida londrina Strand. Tão convincente ela era, que uma criada testemunhando no julgamento disse acreditar que Lady Stella era uma mulher. Mas havia a Stella que abordava clientes nas ruas e oferecia sexo oral.

Se Stella mostrou jogo de cintura diante da notoriedade, lorde Arthur não teve a mesma determinação. Intimado a depor, ele foi encontrado morto antes de aparecer no tribunal. A família disse acreditar que tivesse sido vítima de febre escarlate, mas hoje acredita-se que foi suicídio.

Não por acaso, Stella tomou o rumo dos EUA. No palco, ela era sempre descrita como um homem vestido de mulher. E era tão convincente que o público tinha dificuldades em acreditar que ela não era uma mulher. Depois de alguns anos de sucesso em Nova York, voltou para o Reino Unido, mas seu ato foi perdendo popularidade. Segundo Bartlett, ela terminou sua carreira artística se apresentando no bas fond do circuito de variedades britânico.

Para Bartlett, classificar Stella com um transexual em vez de um indivíduo é um erro. “As pessoas me perguntam se Stella era trans, mas creio ser mais importante evitar categorizarmos pessoas. Todo mundo é um caso único”, diz.

O dramaturgo levou três anos para escrever a peça e conversou com uma série de artistas de gênero fluido. Mas a peça tem um ambiente de época e será encenada em dois teatros vitorianos, em Londres e Brighton, o tipo de local em que Stella faria performances.

O que ela acharia de tudo isso? “Acho que ficaria extremamente feliz com nossa escolha de palcos. Ela se sentiria em casa. E acho que adoraria que falássemos dela”, diz Bartlett.

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