Participação de estrangeiros na compra de empresas brasileiras é a maior em uma década

 

Enquanto os brasileiros decidiram preservar o caixa em 2023, os investidores internacionais foram às compras no mercado nacional. De acordo com levantamento do escritório RGS Partners, especializado em fusões e aquisições (M&A na sigla em inglês), a participação dos estrangeiros nessas operações foi a maior da década no Brasil e representou 47% das transações.

Em 2020, esse porcentual era de 20%, subiu para 38% em 2021 e para 43%, em 2022. O apetite do investidor internacional, em valores, foi ainda maior e chegou a 58% do total em 2023, ante 29% no ano anterior.

O sócio da RGS Partners, Fábio Jamra, afirma que o mercado brasileiro ganhou relevância devido ao conturbado cenário macroeconômico global. “Rússia e China tiveram menos investimentos do investidor estrangeiro, e os EUA passaram por um período de inflação. Com isso, a América Latina, especialmente o Brasil, se tornou mais interessante para o investidor internacional, o que também aconteceu com a Índia.”

Entre as operações que marcaram a participação dos estrangeiros em negócios brasileiros estão a aquisição da Aesop (Natura) pela L’Oreal, Liberty Seguros pela HDI International, e Mineração Rio do Norte pela Glencore, entre outras.

Nas operações ligadas ao mercado de tecnologia, o setor de maior destaque foi o de fornecimento de plataformas tecnológicas para o segmento bancário ou para empresas que fazem a “bancarização” de seus aplicativos. Enquanto Pismo e Sinqia foram compradas, respectivamente, pela Visa e pela Evertec, o maior aporte em startup no País em 2023 foi a rodada de R$ 1 bilhão liderada pelo fundo General Atlantic na QI Tech.

“A Serie B da QI Tech mostra que boas oportunidades ainda atraem capital. Nossa esperança é que a rodada ajude o ecossistema inteiro de startups, posicionando as companhias da América Latina em destaque no mercado de investimentos global”, diz Marcelo Bentivoglio, um dos fundadores e diretor financeiro da QI Tech.

O aporte na empresa permitiu uma operação de M&A no mercado interno: a aquisição da Singulare, corretora de administração que tem mais de R$ 100 bilhões sob custódia e 1 mil fundos gerenciados.

No caso da Sinqia, a aquisição de R$ 2,5 bilhões pela Evertec, processadora de transações baseada em Porto Rico, levou a companhia a fechar capital na B3, pagando prêmio de 20% sobre o valor dos papéis na Bolsa. Com o negócio, a Sinqia vai reforçar a presença da Evertec no País e ampliar a participação para mercados que vão além do Brasil.

Filipe Bodenmuller, diretor de estratégia e M&A da Sinqia, diz que a venda da empresa foi um movimento estratégico para as duas partes. “A complementaridade entre os segmentos de atuação da Evertec e da Sinqia representa uma oportunidade de crescimento significativa, via união e complementação de portfólios: venda cruzada de produtos da Sinqia para a base de clientes latino-americanos da Evertec e, ao mesmo tempo, a ampliação da oferta de produtos Evertec na América Latina”, diz Bodenmuller.

Nos olhos dos gringos
Apesar do aumento da participação dos estrangeiros nas operações brasileiras, as fusões e aquisições caíram em 2023 no País. O Brasil registrou 1,5 mil operações de M&A, redução de aproximadamente 13% no total de operações em comparação ao ano anterior, segundo um relatório de movimentações do mercado produzido pela KPMG. Desse total, 507 foram realizadas por companhias de capital estrangeiro que adquiriram negócios em território nacional.

O levantamento mostra que Estados Unidos, Reino Unido e Alemanha encabeçam a lista de países com maior número de aquisições no Brasil em 2023. Marco Almeida, líder da área de fusões e aquisições da KPMG no Brasil, afirma que a redução no montante de aquisições no País está ligada ao recuo do mercado de venture capital que guiava as transações locais e internacionais de olho nas companhias ligadas a tecnologia e internet, como no caso das startups.

Ele afirma que, ao separar os dados do segmento de tecnologia, a análise mostra que os números de transações de fusões e aquisições mantiveram a força no último ano, o que ressalta a atratividade do mercado brasileiro.

Almeida avalia que, com outros mercados emergentes em situação de instabilidade econômica ou política, o Brasil foi catapultado à lista de prioridades dos investidores internacionais que aproveitam o momento de desvalorização do real ante ao dólar e ao euro.

Na contramão de vizinhos como a Argentina e Venezuela, a aprovação da reforma tributária também influenciou na escolha dos investidores de desembarcarem no País, diz o executivo. “Nós temos visto uma demanda maior de negociações que podem refletir em transações para o final de segundo semestre”, afirma Almeida.

Dados de uma pesquisa recente da KPMG com 400 investidores internacionais apontam que o Brasil só perdia para o México como destino preferido dos investidores estrangeiros. Ele lembra que a atração dos mexicanos está ligado ao processo de nearshoring (mudança geográfica da produção para países próximos do mercado consumidor), que torna a proximidade do país com os Estados Unidos um atrativo extra comparado ao Brasil.

“Nós seguimos como segundo lugar, muito por causa da transição energética, da nossa capacidade de gerar energia limpa e também por que nós temos uma diversificação importante de indústrias no País”, analisa.

Alguns fatores também contribuíram para afastar o comprador brasileiro das operações de aquisição e abrir espaço para os estrangeiros. Entre eles, a seca de dois anos de IPOs (oferta pública de ações, na sigla em inglês) na Bolsa brasileira teve sua parcela de culpa. Daniel Rodrigues Alves, sócio da área societária do escritório de advogados Cândido Martins, lembra que o período de maior volume de entrada de empresas na Bolsa também foi o de maior número de fusões e aquisições.

“Na percepção do investidor nacional, o cenário brasileiro era de instabilidade política e econômica, com juros altos, crédito super limitado e transição conturbada de governo”, afirma. “Para o investidor local, todas essas questões fizeram com que a oferta de dinheiro se retraísse.”

Ao mesmo tempo que a Faria Lima — o principal centro financeiro do País — via a janela de oportunidade para os IPOs se fechar, a taxa básica de juros, a Selic, subia de forma galopante, saindo do patamar histórico de 2% em janeiro de 2021, para 9,25% em dezembro daquele ano, e 13,75% em agosto de 2022.

Alves pontua que, apesar de os juros ainda estarem altos, o mercado financeiro viu o acesso ao crédito se tornar mais escasso, deixando muitos negócios que já operavam alavancados sem opção para captar dinheiro na praça e sair às compras. “Acredito que o número de transações de brasileiros deve voltar a crescer em comparação aos investimentos estrangeiros; vemos as operações aquecidas em comparação ao ano passado”, afirma o especialista sobre as negociações que começam a se destravar no escritório em que atua.

Para especialistas ouvidos pela reportagem, outro fator do mercado doméstico que dificultou o acesso ao crédito no País foi a implosão da crise na Americanas, que revelou em janeiro de 2023 um rombo bilionário nas contas. Com a exposição de grandes — e pequenos — bancos ao problema da varejista, novamente o mercado local teve de rever o custo do crédito, encarecendo ainda mais a tomada de dinheiro no País.

 

Lucas Agrela e Wesley Gonsalves/Estadão Conteúdo

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