STF comparsa do crime?

Justiça brinca

Por Sérgio Alves de Oliveira

O recente episódio da declaração de inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal das leis estaduais da Bahia,Mato Grosso do Sul,Paraná e Santa Catarina,acolhendo ação movida pela Associação Nacional das Operadoras Celulares,que obrigavam as operadoras de telefonia celular a instalar equipamentos para bloqueio de sinal em  estabelecimentos prisionais, merece alguma reflexão, mas também tem o mérito de trazer à tona a verdadeira bagunça legislativa que regula a vida dos brasileiros, reforçando, concomitantemente, por outro lado, o fato de que a “federação” prevista na Constituição não passa de uma fantasia, uma federação de fachada.

O argumento “chefe” do STF para que ele tomasse  essa decisão é  de que a competência  exclusiva para legislar sobre telecomunicações é da União,não dos Estados,por força do estatuído no art. 22, IV,da Constituição,e que os 4 Estados no “banco dos réus”, com suas respectivas  leis,”infringido” a Constituição ,estariam invadindo competência da União, impropriamente legislando sobre matéria que foge da sua alçada. Quanto a esse aspecto nada há a reparar na decisão do STF. De fato, a competência para legislar sobre telecomunicações é exclusiva da União, repetindo a Constituição de 1988 o que já dispunha a de 1967.

Mas essa  absurda decisão chegou a me dar calafrios no senso jurídico. Logo que saí da Faculdade de Direito, em 1968, fui trabalhar com um dos“ mestres” em Direito das Telecomunicações, o Dr.Clemens Hugo Kircher, já falecido, um dos responsáveis pela montagem do arcabouço  construído nos anos sessenta para dar sustentação jurídica à revolução das telecomunicações que se iniciava com a Telebrás. Foi nesse meio que tive que trabalhar com frequência sobre o dispositivo constitucional da época que já garantia a exclusiva competência da União para legislar sobre telecomunicações.  Mas desde então, até agora, eu nunca tinha presenciado um uso tão distorcido da competência para legislar sobre telecomunicações como este agora protagonizado pela Corte Maior. A discussão “sub judice” não era sobre telecomunicações, e sim sobre SEGURANÇA PÚBLICA.

Mas não foi somente o Supremo que errou. Os Estados,com suas esdrúxulas leis,também erraram. E isso não foi levado em consideração pelo Supremo. Ninguém duvida que os Estados também possuem competência para legislar e administrar as suas próprias seguranças públicas internas. Mas entre essa competência para legislar e determinar  através de leis que as próprias operadoras de telefonia móvel instalassem às suas expensas os equipamentos necessários, vai uma enorme diferença.

Essas leis ridículas significam o mesmo que a pretensão de impedir a continuidade da produção de armas de fogo pelo risco delas  acabarem nas mãos de prisioneiros. Ou,pior ainda: que editassem uma lei obrigando os fabricantes de armas de fogo a servirem de “porteiros” nas penitenciárias para evitar que ali entrassem armas de fogo. Essa  exigência dos Estados significa o mesmo que ordenar uma despesa e apresentar a conta para outro pagar, no caso, as operadoras de telefonia celular. Um absurdo. A ignominia das ignominias.

Ora, é evidente que a competência e responsabilidade tanto para controlar os ingresso de armas de fogo,quanto de aparelhos celulares,nas prisões e, do mesmo modo, quanto aos seus eventuais usos,é exclusivamente do estabelecimento prisional e, em última análise ,da própria pessoa jurídica de direito público interno a que estiver vinculado. Significa dizer que os Estados podem legislar sobre segurança pública,inclusive exigir bloqueio  de sinal  em celulares nas prisões,mas terá que suportar os custos necessários para implantação e manutenção dos equipamentos,no que pertine às “suas” próprias  prisões, ou mesmo exigir que a União,ou outro, faça o mesmo quando  o estabelecimento  prisional for da sua responsabilidade.

Certamente não são só as operadoras de telefonia celular as entidades capacitadas a realizar os bloqueios, com a tecnologia compatível. Mas de qualquer forma   tais serviços deveriam ser contratados de terceiros, porque esse “plus” de custo  certamente não está computado no cálculo das tarifas telefônicas ,o que de fato redundaria  em enormes despesas pelas operadoras,já que são milhares as prisões espalhadas pelo Brasil potencialmente  sujeitas a esse tipo de medida se a “moda” pegasse.

Ativando um pouco a própria memória, bem lembro que lá pelo  finalzinho dos anos oitenta ,logo após surgir a tecnologia da telefonia celular, cheguei a comentar com pessoas das minhas relações que a telefonia celular  seria a mais poderosa arma a ser usada pelos bandidos. E na verdade observamos que os governos e os demais políticos não têm imaginação para enxergar lá na frente a possibilidade do mau uso da tecnologia, tomando medidas preventivas,antes que se torne tarde,como agora está acontecendo com a telefonia celular,responsável    em grande parte pelas facilidades da  atividade criminosa.

Retornando à decisão do Supremo sobre o desbloqueio de celulares nas prisões, pode-se resumir que esse tribunal se deparou frente a  duas ilegalidades,uma cometida pelos  Estados,e a outra oriunda da sua própria decisão. A primeira foi o conteúdo em si das leis estaduais questionadas.  Certamente os “réus (os 4 Estados) poderiam exigir o bloqueio  de celular nas prisões, mas nunca poderiam fazê-lo para que as operadoras realizassem  esse trabalho e os administrassem às suas expensas.

Os Estados é que teriam que dar um jeito de atender esses comandos legais oriundos deles mesmos, arcando com todas as despesas necessárias,seja através das próprias operadoras, em acordo, seja através de outras empresas habilitadas em tecnologia para tanto. O que jamais poderia ter ocorrido é  justamente o que aconteceu. O Supremo simplesmente saiu pela “tangente”, decidindo que a matéria envolvia competência para legislar sobre telecomunicações,olvidando que se tratava antes de matéria sobre segurança pública,com isso lavando as suas mãos e dando por encerrada a discussão, decretando o cancelamento das respectivas leis estaduais, por pretensa inconstitucionalidade. Nenhuma palavra foi dita  sobre a  absurda pretensão dos Estados em exigir das operadoras de telefonia móvel  que instalassem e arcassem com todos os custos da implantação e administração dos bloqueadores.

Resumidamente, pode-se dizer sem medo de erro que o Supremo optou pela pior das alternativas que tinha pela frente para julgar a demanda. Mesmo o maior dos imbecis sabe que  grande dos crimes “organizados” são administrados lá dentro das penitenciárias, e que o principal veículo de comunicação usado pelo crime é justamente  a telefonia celular, aliás, como eu já imaginava lá pelos anos oitenta. E são justamente estes os  principais motivos que dão suporte ao título deste texto: O STF COMPARSA DO CRIME.

Sérgio Alves de Oliveira é Advogado e sociólogo.

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