Em 2000, Leni Riefenstahl (1902-2003) estava viva. E ativa. Encontrei-a por acaso: cheguei à Feira de Frankfurt, para uma cobertura jornalística, sem saber como ela funcionava. Perdido, na sala de jornalistas, em vez de me orientar pelo guia de imprensa, que não sabia que existia ainda, fiquei olhando os cartazes. Um deles era da editora Taschen e trazia uma informação que me parecia inacreditável: a cineasta oficial da Alemanha nazista estaria na feira para lançar uma livro. Me agendei para ir à coletiva e, lá, me surpreendi: fui o único brasileiro a cobrir o evento (que não estava incluído no guia de imprensa), o que ajudou a revista Imprensa a justificar o texto como “o furo do mês”, ainda que obtido numa coletiva.  Abaixo, meu relato. 

Ela entra sorridente. O cabelo está tingido. A maquiagem cobre completamente seu rosto, é possível perceber. Está usando um terninho bege, coberto por um casaco de peles no mesmo tom. Magra, bastante magra, mas também muito forte para alguém com os seus 98 anos – e, especialmente, para quem sofreu um acidente de helicóptero no Sudão, em fevereiro deste ano, quando trabalhava –, a mulher que entra para a entrevista, cercada por cinegrafistas e fotógrafos, poderia estar vivendo mais um dia de glória.

Não. A cineasta Leni Riefenstahl está ali para, mais uma vez, tentar inutilmente reconstruir um passado sobre o qual perdeu totalmente o controle – há 55 anos, em 1945, com o fim da 2.ª Guerra Mundial.

Leni esteve na Feira de Frankfurt para o lançamento de um livro de arte que é, ao mesmo tempo, uma fotobiografia. Lançado pela Taschen, Five Lives (Cinco Vidas) estará à venda em uma semana. Custará o equivalente a R$ 65 na Alemanha. Traz imagens dessa personagem desde a  infância e a adolescência até os mais recentes registros que realizou durante mergulhos, agora suspensos, por questões de saúde. Claro que há reproduções de seus filmes, com destaque para Olympia, assustadoramente plásticas. E também de sua passagem pela África.

A multidão de jornalistas em busca de uma imagem sua, numa de suas raras aparições públicas, cria uma certa confusão. Completamente escondida pelo muro de flashs, passam-se dois ou três minutos em que não é possível vê-la. Mas a ordem acaba por ser restabelecida, e começa a conferência, marcada pela figura ambivalente de Leni. Afinal, como bem lembrou seu cicerone, o historiador do cinema Kevin Brownlow, estava-se diante de uma das inventoras da arte, gente do porte do russo Sergei Eisenstein, certamente a última remanescente da geração. Mas também estava-se diante da mulher que, como ninguém, criou uma imagem para a ideologia nazista e cuja obra provoca controvérsias que parecem insuperáveis.

Peter Cohen, no filme Arquitetura da Destruição, demonstrou que o genocídio em massa de judeus e ciganos promovido pela Alemanha estava, do ponto de vista estético, muito próximo da busca da beleza incondicional. Leni foi, no cinema, certamente, quem mais bem expressou esse culto à forma, utilizando recursos que até então eram uma novidade nas telas.

Brownlow lembrou que Ingmar Bergman também esteve ligado ao Partido Nazista em sua juventude e que outros nomes do cinema não podem se orgulhar do passado quando se fala dos anos 1930; no entanto, apenas Leni teve de carregar o fardo de passar toda a sua vida tendo de responder sobre isso.

“Antes da Guerra ninguém me chamava de nazista e criminosa”, afirmou Leni, arrancando aplausos – sempre de metade da audiência, enquanto a outra mantinha-se num silêncio constrangido, ou porque não fica bem para um jornalista torcer tanto numa coletiva, ou porque não se convence com as palavras da convidada.

No início, suas respostas eram dadas num tom baixo, como se fossem humildes pedidos de desculpas. Mas, conforme as perguntas tornavam-se mais ásperas, Leni foi falando mais alto, com a vitalidade de um cão amaeaçado. Quem não a podia ver jamais imaginaria estar ouvindo uma senhora quase centenária, que, somente quando esteve mais acuada, queixou-se do calor, das operações por que passou recentemente e da saúde precária. “Os jornais mentem há 50 anos sobre mim e mais da metade do que escrevem sobre mim é mentira”, reclamou. “De início, isso me incomodava.”

Mas ela acabou se acostumando. Em termos, porque disse estar gostando muito da oportunidade de falar a tanta gente sobre esse passado que a amarra. “Trabalhei para Hitler apenas por sete meses”, disse Leni. E completa: “Preferia nunca tê-lo encontrado.” Teria sido mais feliz, acredita, se tivesse ido para os EUA, trabalhar como atriz.

Ela foi contestada. Um dos jornalistas disse estar cansado de ouvir Leni negar seu passado nazista e perguntou a quem se destina um livro como esse, insinuando que a estética de Leni continua a agradar os gostos da extrema-direita. Ela retrucou e tentou desassociar pelo menos Olympia do regime: “Hitler não gostaria de ver exibidos nas telas os atletas negros que venceram em Berlim”, argumentou, sem citar o nome do velocista Jesse Owens. Não convenceu. Afinal de contas, seu filme foi premiado em Berlim no dia 20 de abril, em 1938, no aniversário do ditador.

A jornalista Petra Erschfeld, de uma TV alemã, parecia torcer a cada pergunta e a cada resposta (na maioria das vezes, em alemão e depois traduzida, outras diretamente em inglês) de Leni. Vibrava mais quando a cineasta enfrentava dificuldades. Gostou especialmente quando, do outro lado da sala, veio uma pergunta: “Leni, o que não é justificável em nome da  arte?” Mas a resposta foi frouxa: limitou-se a um “não entendo o que você está querendo dizer”. Para Petra, é muito difícil falar de Leni. Porque ela foi genial, do ponto de vista artístico, mas também porque ela também foi a expressão do Terceiro Reich, do mal. Leni, como ninguém, expressou a beleza, que depois deixou claro possuir um lado obscuro e indissociável.

No momento mais ameno da entrevista, Leni falou sobre o filme que a norte-americana Jodie Foster planeja produzir sobre ela. Para Jodie, “nenhuma mulher no século 20 foi tão admirada e vilanizada simultaneamente” quanto Leni. Um talento imenso, a serviço do mal. A alemã explicou que não cedeu os direitos porque a lei norte-americana não lhe daria direito de veto sobre fatos que considerasse incorretos em sua história. Por isso, preferiu ceder suas memórias a um alemão. Jodie, explicou, pode até fazer um filme sobre Leni, mas não será um documentário-biografia oficial.

O mesmo zelo Leni não demonstrou com a fotobiografia da Taschen. Diz que ainda não havia tido tempo de lê-la e que só o recebera anteontem mesmo, mas que confiava plenamente que as entrevistas que deu e os documentos que mostrou à editora seriam expressados corretamente. “Não sei em que essa obra pode ajudar a restabelecer a verdade”, disse ela, eterna suspeita de ter namorado Adolf Hitler.

Mas, afinal de contas, será que Leni é capaz de explicar por que teve de passar a maior parte de sua vida dando explicações sobre o que produziu de mais marcante? Sim, ela pode. Lembrou que sua vida está perto do fim e que passou quatro anos na prisão, explicou que já está acostumada com isso e ponderou que muitos nazistas de carteirinha não foram punidos no fim da 2.ª Guerra. “Alguém tinha de ser acusado e difamado, e escolheram a mim, porque eu fiz o filme perfeito.”

Leni vai morrer sem conseguir livrar-se dessa culpa – a de fazer o filme perfeito. O que apenas parece injusto. Mas não é.