Pele insensível: seis casos de hanseníase são registrados por dia na Bahia

Doença que provoca perda de sensibilidade é mais comum nas crianças e adolescentes

O corpo de Davi começou a esmorecer. Nasceram manchas avermelhadas, os dedos teimavam em se esconder e a dor não ardia nem com agulhadas nos braços magricelos. As enfermeiras da Vigilância Epidemiológica o conheceram em uma escola da Vila Cascalheira, bairro da cidade de Barreiras, Sudoeste da Bahia, afundado numa cadeira de plástico. O menino relatou lentamente os sintomas, tanto quanto permitiam seus 5 anos. A história, acompanhada de um breve exame, confirmou a suspeita das ouvintes. A criança começava a ser devorada silenciosamente pela hanseníase. Diariamente, seis pessoas receberam o diagnóstico na Bahia este ano – 995 até o dia 12 de junho. 

Naquela tarde, Davi entrou para a estatística dos menores de 15 anos diagnosticados com a doença. De 2014, quando as enfermeiras entraram na sala de aula em Cascalheira, a 2017, foram 777 casos de hanseníase entre crianças e adolescentes, com menos de 15 anos, notificados na Bahia. Apenas na cidade de Davi, foram 73 registros no período – 16 no ano passado, o maior número bruto de todo o interior do estado. Dores caladas involuntariamente ora pela pouca idade dos pacientes, ora pela falta de informação.

Os casos entre crianças e adolescentes começam a ser catalogados principalmente em 2014, quando o Ministério da Saúde lança a Campanha Nacional de Hanseníase, Verminoses, Tracoma e Esquistossomose em Escolares. O objetivo: conhecer realidades como a de Davi, menino pobre e portador de hanseníase, para conceder a cura. No próximo dia 30, o programa completará justamente a idade que tinha Davi ao ter suas manchas e insensibilidades traduzidas. Exatos cinco anos da constante descoberta: a doença circula por creches e escolas.

Na Bahia, mostra dados da Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (Sesab), a taxa da doença entre menores de 15 anos é de 3,78 a cada 100 mil pessoas – considerada muita alta pelo ministério; nas outras seis faixas etárias analisadas, a média cai para 1,78. Nos últimos 10 anos, o Brasil até apresentou uma redução de casos: de 40,1 mil para 25,2 mil. Mas, a preocupação é justamente com os focos ativos em menores de 15 anos: 1,6 mil (6,72%) do registrado.

A coordenadora da Vigilância Epidemiológica de Barreiras, Doraci Madalena de Souza, é confrontada com os números. Ela própria acompanhou a história de Davi, e de tantos outros pequenos, e comenta:

“Vamos pensar: quanto mais a gente busca o contato, mais a gente descobre casos [de hanseníase], e isso é positivo. Se a gente não descobrir, os casos vão continuar existindo, não é?”.

Apenas a descoberta, afinal, possibilitou a Davi, hoje com 10 anos, a cura. O tratamento é realizado por meio da chamada Poliquimioterapia, uma fusão de três drogas medicamentosas, e os médicos já conseguem eliminar a doença do corpo em um prazo de seis meses. A ignorância, na verdade, esconde a realidade dos números. É o médico Paulo Machado, coordenador do Ambulatório Magalhães Neto, um dos dois destinados ao tratamento da doença em Salvador, quem esclarece:

“O elevado índice entre crianças revela que ainda há um número grande de pessoas, provavelmente familiares, ainda não diagnosticados e sem tratamento. Um problema que traz consigo outros”.

A hanseníase é mesmo múltipla. É causada pela bactéria Mycobacterium leprae, bacilo similar ao que provoca tuberculose; vista por manchas vermelhas, brancas ou marrons dispersas no corpo; e sentida por perdas de funções nos nervos, explica o dermatologista. A doença progride, os nervos perdem o vigor: prender os dedos, dobrá-los, aproximar o indicador do polegar são habilidade naturais perdidas. Os sintomas variam de caso a caso, mas são os mesmos para crianças e adultos, continua o médico.

Depois, soma-se o preconceito. E os jovens, são partes direta e indireta da história da doença milenar. Adiante, a história de Agnaldo Gama, 52, separado da mãe minutos após seu nascimento. Até 1985, pais diagnosticados com hanseníase, à época chamada de lepra, eram impedidos de contato com os filhos. Mas, antes, o sociólogo e pesquisador Alaim Passos ajuda a percorrer a narrativa da doença, de um erro bíblico à estigmatização.

Longe dos colegas 
Tão logo suspeitaram do diagnóstico de Davi, as enfermeiras acompanharam o garoto até uma sala próxima, fora do alcance de olhos e ouvidos dos colegas. É um procedimento padrão na campanha de saúde nas escolas. A coordenadora da Vigilância de Barreiras, Doraci Madalena de Souza, explica o porquê:

“Entramos na sala, explicamos a doença, questionamos sobre possíveis manchas em cada um. Mas, quando suspeitamos, a gente já evita que os outros da sala fiquem sabendo. Pode causar um alarde desnecessário”

Mas, a decisão de retirar o pequeno Davi da sala recorre a uma história de estigma da hanseníase, ensina o pesquisador Alaim Passos. Ele organiza os fatos e traça o percurso da doença, a mais antiga de que se tem registro, a mais estigmatizada de que se tem conhecimento. Tudo começa no ano 300 a.C., quando uma tradução da Bíblia do Hebraico para o grego transforma a expressão Tsara-Ath (impureza) no termo Lepra, como era chamada a hanseníase até 1995. 

Da trapalhada, surge também uma névoa de assombro em torno da doença. O início de sucessivos erros à custa dos pacientes diagnosticados. Ficou reconhecido, então: lepra é impureza, pecado; assim sendo, são pecadoras as pessoas com a doença. A figura idealizada do doente também serviu para reforçar o avanço do estigma, explica Alain. As manchas no corpo e as deformações no rosto causadas pela falta de tratamento começam a causar repulsa e medo. Chegar perto seria incorrer ao risco do contágio. 

Até 1868, o assombro era causado também pela falta de conhecimento. Apenas naquele ano, conta Alaim, a causa da doença é descoberta pelo médico e botânico Gerhard Hansen: a bactéria Mycobracterium Leprae. Pouco a pouco, a lepra, como ainda era denominada, tinha suas causas e tratamento revelados. Os riscos de contaminação explica o médico infectologista Fabio Amorim ocorrem principalmente por meio de contato direto com excreções do paciente não curado. Mas, são “riscos muito baixos, depende de fatores como a própria predisposição imunológica”. 

A cura é descoberta apenas em 1960 e, hoje, a primeira dose do remédio indicado para o portador da hanseníase já é suficiente para impedir o risco de contágio. No entanto, até 1985, os pacientes eram internados compulsoriamente pelo Estado: afastados de família e amigos à força. Os pacientes eram enviados a colônias isoladas, criadas durante o governo Vargas, em 1930.

“Os índices da doença eram realmente preocupantes. Era algo bastante negligenciado. Na verdade, até hoje é muito negligenciada. Se você pesquisar câncer, terão inúmeras pesquisas, mas hanseníase? Pouquíssimas”, defende Alaim. 

A internação compulsória deixa de existir em 1985 e, para tentar abrandar o estigma, o governo proíbe a utilização do termo “lepra”, dez anos depois. No dia 29 de março, ficou definido, por força da Lei nº 9.010, a substituição da palavra por hanseníase, menção ao médico Gerhard Hansen. Mas, o pesquisador Alaim acredita ser também problemática a troca: “com essa dissolução, parece que a ideia é que ela deixou de existir. Quando, na verdade, ainda são necessárias ações para acabar com o ciclo de preconceito”. 

Jovens de antes: separação e luta por justiça
Agnaldo Gama acabou de nascer no Leprosário de Cajazeiras. O vínculo com a mãe é cortado exatamente naquele momento, em 1965. Enfermeiras e médico afastam o bebê e o levam para o orfanato Eunice Wiver; a mãe continua ali, vê o pequeno ser arrancado rapidamente para um lugar desconhecido. Diagnosticada com hanseníase e internada no centro, não pode nem carregar o filho nos braços. Agnaldo, vítima da doença desde o primeiro minuto de vida, cresce junto a outros tantos meninos filhos de internos do Leprosário. Afastado da mãe, do pai, distanciado do mundo lá fora.

Nos raros encontros com a mãe, eram proibidos os mínimos toques: a distância recomendada era de cinco metros. Filhos e mães ficavam frente a frente, com abraços abortados. Com a chegada de voluntárias sociais italianas à casa, no início da década de 70, a distância foi reduzida para dois metros. Mas a separação forçada era muito maior que metros, estendeu-se por anos na vida de pais e filhos. O próprio Agnaldo, hoje com 52 anos, foi morar com a mãe apenas aos 13. Junto com ele, outros três irmãos também nascidos no Leprosário. A relação já estava minada pelos traumas de todos.

“Para minha mãe, colocar quatro filhos dentro de casa era algo muito difícil. Ela tinha uma agressividade dentro dela. Aos 15 anos, não aguentei a pressão de tanta ignorância e fugi de casa”, relembra.

Idas e vindas de sofrimento e aprendizado para Agnaldo. Se não possuía um bom relacionamento com a mãe, tampouco conseguia conviver com o pai. Somente aos 18 anos, quando frequenta a Igreja, ele diz ter começado a aprender lições de amor. Cuidou da mãe, falecida em 2017, trabalhou e tenta superar os dias de tristeza no orfanato ao relatar sua experiência, pedir por justiça e recorrer a Deus. Desde 2015, decidiu também lutar pelas vítimas indiretas da hanseníase.

Na coordenadoria do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan), Agnaldo acompanha, na Bahia, pelo menos 80 filhos que pedem indenização ao governo pelos danos causados na infância. No Brasil, são 15 mil filhos, segundo média do Morhan Nacional. A proposta de lei já espera votação na Câmara dos Deputados, e segundo Lucimar Batista, coordenadora nacional do Morhan, o valor referente aos ressarcimentos é próximo de R$ 200 mil. Em 2007, pelos menos 10 mil pessoas internadas compulsoriamente já haviam sido indenizadas.

As memórias dos anos de orfanato jamais serão esquecidas: as crianças de ontem têm a superação impressa no corpo. As crianças de hoje travam uma nova luta. A voz de Agnaldo, emocionada pelas lembranças, resume: “Nunca quis ser sucumbido pelo que passei. O necessário é que ninguém sucumba, por mais jovem que seja”.

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