Tristeza e medo ainda acompanham a velha Exu que Gonzagão pacificou
A cidade deveria ser alegre, viver no ritmo da sanfona branca de Luiz Gonzaga, o filho mais ilustre. Mas Exu é uma tristeza só. Os moradores se apressam em lembrar que a luta entre as famílias Alencar e Sampaio ficou no passado. Em 1982, ano em que os brasileiros voltavam às urnas para eleger governadores, 18 anos após o golpe militar contra o presidente João Goulart, Gonzagão ajudou a acabar com uma disputa do tempo do Brasil Colônia, que se transformou no maior símbolo das rixas de clãs na política nacional.
A tragédia pode ter ficado no passado, mas, aos poucos, quem é de fora percebe que as marcas do conflito sangrento, que deixou cerca de 40 mortos apenas no período mais recente – da década de 1940 ao início dos anos 1980 – ainda são fortes na cidade de 50 mil moradores, a 630 quilômetros do Recife.
Em Exu, o ódio moldou casas e hábitos. As fachadas têm poucas janelas, as portas ficam fechadas em dias de intenso calor, as conversas e os cumprimentos nas ruas são rápidos e dificilmente se vê, nas noites frescas do sertão, mulheres e crianças em cadeiras nas calçadas. Nada de muita conversa. Tudo por causa do clima de medo que ainda paira no ar.
A luta política dos Alencar no sertão teria começado em 1710, há exatos 303 anos, quando os irmãos portugueses Leonel, Alexandre, João Francisco e Marta, perseguidos pela Coroa portuguesa, se instalaram no pé da Serra do Araripe, entre as capitanias do Ceará e de Pernambuco. A chegada deles deu início a divergências com outras famílias.
Uma neta de Leonel, Bárbara de Alencar, que viria a ser avó de José de Alencar, autor de O Guarani, se destacou com seus filhos na Revolução de 1817, contra a Coroa. Foi presa e torturada. Viveu dois anos numa cela empesteada de pulgas e ratos. Liberta, veria sete anos depois, em 1824, o filho seminarista José Martiniano proclamar a República na praça do Crato, no Ceará. À frente do governo da capitania estava um Sampaio. A tropa do governador Inácio Manuel Sampaio fuzilou dois filhos de Bárbara – Tristão e Carlos José –, um irmão, Leonel, e um sobrinho, Raimundo.
A matriarca Bárbara era símbolo de um mundo caboclo que resolvia as pendências no punhal e, ao mesmo tempo, de ideias iluministas que conquistaram França e Estados Unidos. Essas ideias chegaram ao universo de Bárbara por meio de amigos padres que passaram pelo seminário de Olinda. Vista como legítima representante do Brasil, sem trocadilhos, bárbaro, ela é apresentada ainda como a mulher que desafiou homens da família Sampaio por se opor a perseguições de índios, padres e negros.
Barão de Exu. A rixa entre os Alencar e os Sampaio voltou a recrudescer na manhã do dia 10 de abril de 1949. Foi nesse dia que houve um tiroteio em Exu no qual morreram o coronel Romão Sampaio e Cincinato de Alencar. O filho de Cincinato, Francisco Aires de Alencar, saiu ferido. “Francisco, meu marido, ficou 30 anos e três meses paralítico”, conta Diva de Alencar Parente, 79 anos, em frente ao casarão da fazenda Gameleira, que pertenceu a Gualter Martiniano de Alencar, barão de Exu. O diploma do barão está na parede de um metro de espessura da casa que fica no alto de uma colina, no começo da Serra do Araripe. O barão era sobrinho de Bárbara de Alencar, avô de Cincinato e bisavô de Francisco, que morreu de diabetes em 1979.
Francisco Aires de Alencar Filho, trineto do barão, foi mandado para Recife pela mãe, Diva, com intuito de estudar e não se envolver na guerra com os Sampaio. Formado em engenharia, Francisco classifica a luta como “fruto da ignorância”. “Quando o Estado está presente, a coisa muda”, afirma o representante da oitava geração da família.
José Arêz Alencar, filho adotivo de Diva, levou 11 tiros numa emboscada no Recife, mas sobreviveu. “Do nosso lado morreram 11. Do lado deles morreu menos gente”, calcula a matriarca dos Alencar. “Tinha de dar uma parada. Quando entendia que matava um do lado de cá, morria outro do lado de lá. Não dava jeito”, lembra. Ela se recorda também de Santana, moça clara, pele bem parecida com as dos descendentes do barão. “Santana, a mãe do Luiz Gonzaga, não assinava como Alencar, mas dizem que era filha do barão”, conta Diva.
Ana Batista de Jesus, conhecida por Santana, era filha de José Moreira de Alencar, parente do barão, com uma cabocla cearense, Efigênia. Em 1909, Santana casou-se com o músico Januário. O casal vivia numa casa de taipa nas terras do barão quando nasceu o filho Luiz Gonzaga.
Pacificador. O Rei do Baião entra nesta história porque, a partir dos anos 1970, tentou pacificar as famílias de Exu. Era aceito como mediador graças ao seu sucesso como cantor no sul e porque não tinha sangue Sampaio nem era considerado um Alencar das duas primeiras castas – dos nobres e dos intermediários. Gonzaga descendia dos Alencar “misturados”. “Era só cheio de graça”, lembra Diva.
Dura um dia a negociação para o empresário Jusiê Sampaio dar sua versão da luta de famílias. A filha dele, Jaciane, diz que o pai não concede entrevista por temer a volta do conflito. Uma emboscada deformou o rosto de Jusiê – ele ainda perdeu dois irmãos na guerra. Argumenta que falar do passado é trazê-lo para o presente. Jusiê só aceitou conversar mais tarde, quando ficou claro que o objetivo da entrevista era apenas falar de sua mediação, juntamente com o cardeal-arcebispo de Salvador, dom Avelar Brandão Vilela, e Luiz Gonzaga, para pacificar a cidade.
Ele conta que foi em 7 de agosto de 1978 que sofreu uma emboscada de quatro homens. Estava numa caminhonete com Jaciane quando os pistoleiros atiraram. “Nunca contei quem atirou em mim. O pessoal me aperreava. Decidi até hoje guardar segredo”, afirma. “Meu medo era ver um filho meu ir vingar a emboscada e ir matar. Preferi ser chamado de covarde a ser apontado como um homem que matou alguém.”
Numa sociedade regida pelas leis da honra, Jusiê enfrentou resistência até mesmo dentro de casa após escapar da emboscada. “Preferia ver meu filho morto”, disse sua mãe, Rosemira, ao ver seu rosto deformado.
Rosemira é sobrinha do coronel Romão Sampaio, morto no tiroteio de 1949. Romão, por sua vez, era filho do coronel Romão Filgueira Sampaio, intendente de Salgueiro em 1867 e primeiro prefeito da cidade (1892-95), que esvaziou o poder do coronel Manuel de Sá – um ex-coletor de impostos da Coroa portuguesa no Semiárido, descendente de dom Diniz, rei de Portugal, e da rainha Isabel, da Espanha.
No Planalto. Os descendentes de Bárbara de Alencar correram o mundo e atuaram em papéis importantes na história do Brasil. Da matriarca descendem republicanos e monarquistas, getulistas leais e adversários ferrenhos de Vargas, intelectuais do Partido Comunista e generais do regime militar, aliados de Lula e tucanos, gente da esquerda e da direita. Raquel de Queiroz, autora de O Quinze, não esqueceu da matriarca ao idealizar Maria Moura, a protagonista do romance. Ela própria, Raquel, como Bárbara, foi presa política, na ditadura Vargas, em 1937.
Foi em outra ditadura, em 1964, que um descendente de Bárbara chegou à Presidência. Ao assumir o governo, o marechal Humberto de Alencar Castelo Branco recebeu carta de Antoliano Alencar, de Exu, pedindo que intercedesse por outro parente: o então governador de Pernambuco, Miguel Arraes de Alencar, adversário do novo regime. “Nunca tive, não tenho e Deus me livre de ter tendências comunistas. Espírito conservador, feliz herança de nossos ancestrais que guardo e conservo como joia de valor inestimável, aqui estou perante o cidadão Humberto de Alencar Castelo Branco pedindo que interceda a favor de Miguel Arraes de Alencar, para que se conserve intacta a lealdade e a coragem com que sempre agiram os Alencar de uns para os outros”, escreveu.
“Não peço a defesa de Miguel político, homem de Estado, mas a defesa da raça Alencar no Brasil de que V. Exa. é a expressão mais legítima”, completou. “As Forças Armadas cumprem o seu dever com independência, bravura e altivez. No dia primeiro depõem do cargo de governador de Pernambuco e prendem um Alencar, mas depois, por que põem na Presidência da Republica um Alencar? Porque os Alencar são leais e sinceros.”
Hoje, os Alencar de Exu não veem com bons olhos a parceria do governador de Pernambuco, Eduardo Campos, neto de Arraes, com Zilclécio Pinto Saraiva, chefe dos Sampaio-Saraiva. Na cidade, os partidos nacionais são ofuscados por dois grupos políticos: o Boca Branca, da família Alencar, e o Boca Preta, dos Sampaio e Saraiva.
Formalidade. Em época de eleição, PT, PSDB, PSB, PMDB ou DEM são siglas que só cumprem uma formalidade no registro dos candidatos. Um Alencar ou Sampaio pode mudar do PT para o DEM sem traumas. Mas nunca passar de Boca Preta para Boca Branca, ou o contrário. Embora os Alencar gostem de divulgar a história de que o Barão de Exu libertou seus escravos bem antes da Lei Áurea, foi a família Sampaio que ficou associada ao eleitorado negro, pobre, de Exu. O coronel Romão, morto no tiroteio de 1949, é considerado o pai do Boca Preta. Parentes do coronel dizem que, agora, a divergência com os Alencar só ocorre dentro das regras democráticas. O atual prefeito, Leo, do PTB, é Saraiva.
Se o acordo de paz entre as famílias não tivesse sido selado, a luta poderia se exaurir por decisões tomadas no cartório de registro de civil da cidade. Pais de família registravam os filhos com o sobrenome do clã rival ou evitavam colocar os seus próprios sobrenomes nos recém-nascidos para garantir a “neutralidade” das crianças. Três irmãos de Jusiê Sampaio foram registrados como Alencar, orientados por um tabelião. A filha dele, Jaciane Queiróz Peixoto, hoje professora, não tem o sobrenome Sampaio.
Em Exu, a geração anos 1980, hoje na faixa dos 30 anos, vive entre a memória de sangue dos mais velhos e a expectativa de um desenvolvimento que só é realidade em cidades médias como Salgueiro e Petrolina. Foi para lá que muitos jovens das famílias Alencar e Sampaio foram em busca de trabalho no comércio formado em volta dos grandes projetos do governo federal. Neto de Romão, Alexandre Saraiva Sampaio, 35 anos, observa que em Exu não há agricultura forte nem indústria. O comércio vive dos recursos do Bolsa-Família e a prefeitura, do Fundo de Participação dos Municípios.
Na avaliação de Alexandre, a música de Luís Gonzaga, que no passado ajudou a pacificar as duas famílias, agora poderia garantir dias melhores para os moradores. “Deveríamos explorar o ícone Luiz Gonzaga”, afirma. “O berço do forró é aqui”, ressalta. Alexandre diz que o museu dedicado ao Rei do Baião está nas mãos da família de um empresário do cantor. Reclama que o axé e outros ritmos “estrangeiros” tomaram o espaço da sanfona do Rei do Baião. Alega que só a música de Luiz Gonzaga é capaz de “agregar valor” e acabar com o clima de angústia do pós-guerra. “É como se agente vivesse perto de um vulcão adormecido. Aqui, uma palavra pode causar um impacto muito grande.”
A mesa onde Luiz Gonzaga tentava resolver o conflito secular está na antiga casa do sanfoneiro, em Exu. “Ele sempre foi uma pessoa de barriga cheia, de luxo. O luxo dele era a comida”, lembra Raimunda de Sale, 68 anos, a Mundica, sua fiel cozinheira.
Ela conta que Gonzagão convidava em separado representantes dos dois clãs. “Só na hora do jantar os Sampaio sabiam da presença dos Alencar e os Alencar, dos Sampaio”, diz.
A história do lento processo de paz, que teve Mundica como uma das principais narradoras, envolveu até o presidente em exercício Aureliano Chaves. Em 1981, Gonzagão surpreendeu Aureliano no saguão de um hotel em Belo Horizonte, ao tocar a música Boiadeiro. Chaves – que tinha fazenda em Minas Gerais – foi cumprimentá-lo e o sanfoneiro pediu apoio para acabar com a luta de famílias.
Segundo Mundica, terminada a guerra de clãs, Gonzagão compôs Prece por Exu Novo. Essa foi uma das últimas entrevistas de Mundica. A cozinheira de Gonzagão morreu em fevereiro.
Fonte: Estado de S. Paulo