Sobre a vida e obra de Charles Darwin
Por Felipe A. P. L. Costa [*]
Filho de Robert Waring Darwin (1766-1848) e Susannah Wedgwood (1765-1817) – ele um médico, ela uma dona de casa –, Charles Robert Darwin nasceu em Shrewsbury, no centro-oeste da Inglaterra, em 12/2/1809.
Foi o penúltimo em uma família de seis irmãos (todos atingiram a maturidade): Marianne (1798-1858), Caroline (1800-1888), Susan (1803-1866), Erasmus (1804-1881), ele e Emily (1810-1866).
Aos 16 anos, seguindo uma tradição familiar do tempo de seu avô paterno, Darwin foi enviado a Edimburgo (Escócia), onde deveria estudar para se tornar médico. Acompanhado de Erasmus, chegou à cidade em outubro de 1825. (Seu irmão estudava medicina em Cambridge, na Inglaterra.)
Apreciou muito a atmosfera cosmopolita e a agitação da Atenas do Norte. As aulas que tinha de assistir, no entanto, eram tediosas, quando não um verdadeiro martírio. Nas palavras de Desmond & Moore (1995, p. 47; grafia original) [1]:
O desencanto de Charles foi acelerado por seus estudos clínicos. Ele caminhou pelas alas da Enfermaria Real, perto da faculdade, e o que viu o perturbou. Charles compartilhava com seu pai o horror pelo sangue, mas, ao contrário do Doutor, nunca perseverou para superar essa hipersensibilidade. Suas duas visitas a salas de operação reviraram seu estômago, reforçando seu medo mórbido de sangue humano. Ali o corte era sangrento e rápido; nos dias da cirurgia heróica, antes do anestésico, a velocidade era essencial para reduzir o trauma do paciente, sempre enfaixado e berrando. Mãos imundas agarravam serras imundas, talhando e cortando rapidamente, o sangue correndo para baldes de serragem. Os estudantes acotovelavam-se todos em torno, na atmosfera tensa e vaporosa, lutando por uma olhada. Durante uma operação particularmente difícil em uma criança, Charles finalmente fugiu da sala, incapaz de assistir e determinado a nunca mais entrar em uma sala de operações. Aquela visão assombrou-o pelo resto da vida.
Em março de 1827, abandonou Edimburgo de vez – sem concluir o curso. Passou alguns meses viajando – conheceu Londres e Paris. Voltou para casa. Ficou decidido que ele iria estudar na Universidade de Cambridge – se não queria ser médico, que fosse ao menos um membro da igreja.
Chegou a Cambridge em janeiro de 1828. Além das disciplinas obrigatórias, assistia a aulas de história natural (e.g., botânica e geologia). Já era um naturalista amador, mas influenciado pelas aulas de John S. [Stevens] Henslow (1796-1861), um professor “agradável e de boa índole”, de quem se tornou pupilo e companhia assídua, passou a se interessar pelo assunto mais seriamente.
Concluiu os exames finais em janeiro de 1831 – nunca chegou a ser um aluno brilhante, apenas tomava o cuidado de não ser reprovado. Na época, não tinha grandes ambições em torno de uma carreira acadêmica. Na verdade, o jovem Darwin não parecia saber muito bem o que queria da vida…
Assim, com o diploma na mão, a sua perspectiva mais promissora era assumir uma paróquia em alguma cidade do interior.
Foi então que recebeu uma carta de Henslow.
Isso foi em agosto de 1831.
Seu antigo mentor instigava-o agora a aceitar uma vaga (não remunerada) em um navio hidrográfico que estava prestes a zarpar – a previsão inicial era que a viagem durasse uns dois anos. Gostou e acatou a sugestão. Mas o Doutor – o pai dele – foi contra, alegando que aquilo era “mais uma evidência da preocupação do filho em se divertir sem rumos”. Os tios intercederam e o Doutor não só consentiu com a viagem como deu algum dinheiro ao filho.
A presença de alguém como Darwin a bordo – não propriamente como naturalista, mas sim como uma espécie de interlocutor e ajudante letrado – era uma reivindicação do comandante, o jovem oficial militar e meteorologista Robert FitzRoy (1805-1865) [2].
A viagem do Beagle
A viagem de Charles Darwin ao redor do mundo é um episódio famoso e bem conhecido na história da ciência, embora o relato às vezes contenha imprecisões.
Algumas delas: o hms Beagle (hms é a sigla em inglês para a expressão ‘Navio de Sua Majestade’) não era um navio de pesquisa científica; Darwin não participou da expedição com o propósito de encontrar evidências a favor de sua teoria evolutiva (ele sequer voltou para casa com uma teoria evolutiva na cabeça); a passagem pelas ilhas Galápagos foi uma experiência marcante (sobretudo pelo que aconteceria depois), mas ele não teve nenhum lampejo revolucionário durante as cinco semanas que passou no arquipélago; suas ocupações científicas durante a expedição tiveram mais a ver com geologia do que com biologia.
A viagem teve início em Plymouth, cidade portuária no sul da Inglaterra, de onde o Beagle zarpou em 27/12/1831, atracando de volta em 2/10/1836. O alvo principal da expedição era a América do Sul (3/4 de um total de 58 meses foram passados aqui), sobretudo Argentina e Chile. Atracou em terras brasileiras: na vinda, esteve em Fernando de Noronha (20/2/1832) e nas cidades de Salvador (28/2 a 18/3/1832) e Rio de Janeiro (3/4 a 5/7/1832); na volta, esteve em Salvador (1 a 6/8/1836) e, por razões de avaria, em Recife (12 a 19/8/1836). Foi a segunda das três viagens que o navio faria antes de ser aposentado pela Marinha britânica, em 1843.
Na maior parte do tempo, Darwin esteve ocupado com problemas geológicos, como a questão do soerguimento dos continentes e o afundamento do assoalho oceânico. O navio tinha uma pequena biblioteca e ele contava também com a correspondência que chegava da Inglaterra. Levou ainda alguns livros – e.g., o volume 1 de Principles of geology (John Murray, 1830), de Charles Lyell, com quem mais tarde estabeleceria uma amizade duradoura.
A leitura dessa obra – sugestão de Henslow – teve um papel decisivo em sua formação. O volume se converteria não só em livro de cabeceira como também em referência-chave a iluminar muitas das observações que fez durante a viagem. Recebeu o segundo volume em Montevidéu, em novembro de 1832.
Antes de chegar às Galápagos, em setembro de 1835, Darwin esteve pouco envolvido com problemas biológicos. Uma das exceções foi a questão da origem e formação dos atóis. Como muitos geólogos da época, sua preocupação era coletar e identificar materiais de amostra, incluindo restos fósseis. Coletava espécimes, claro, mas as questões biológicas só assumiriam a primazia após ele perceber a relevância e as interconexões entre alguns dos seus achados. E essa reviravolta só ocorreria mais tarde, já na Inglaterra, anos depois de sua breve estada em Galápagos.
Durante a viagem, preencheu cadernos com notas, efetuou escavações e colecionou amostras. Havia se preparado para isso, tendo embarcado caixas e caixas com equipamentos – desde jarros de vidro e conservantes químicos para acondicionar espécimes até instrumentos de dissecação e aparelhos de precisão. Presenciou erupções vulcânicas e, enquanto esteve no Chile, testemunhou os efeitos devastadores de um abalo sísmico. Esta última experiência, exemplo dramático da lição que estava a aprender com Lyell – “a superfície do planeta muda!” –, mexeu muito com ele [3].
Quando embarcou, o jovem Darwin era um confiante defensor do fixismo (leia-se: crença segundo a qual cada espécie foi criada em separado e, desde então, permaneceu mais ou menos inalterada). No plano pessoal, era um sujeito fervorosamente religioso.
A viagem chacoalhou com os seus credos científicos. As mudanças, no entanto, não se deram bruscamente nem todas de uma só vez. Novas ideias foram amadurecendo aos poucos, tanto durante como após a viagem. Os princípios que cultivou ao longo da vida foram o resultado de inúmeras leituras, conversas e correspondências. Conduziu pesquisas e experimentos em sua própria casa [4].
Embora nunca mais viesse a participar de qualquer excursão ou viagem científica, manteve o senso crítico e um apurado senso de observação. Anos mais tarde, ele escreveria na autobiografia (Darwin 1958, p. 28; tradução livre) [5]:
A viagem do Beagle foi de longe o acontecimento mais importante na minha vida e determinou toda a minha carreira […]. Sempre achei que devo à viagem o primeiro e real treinamento ou educação do meu intelecto; fui levado a me debruçar atentamente sobre vários ramos da história natural e, assim, o meu senso de observação foi aprimorado, embora sempre tenha sido bem desenvolvido.
De volta à Inglaterra
Em outubro de 1836, já em casa, Darwin começou a organizar as anotações que havia feito durante a viagem. Converteu parte delas em um livro respeitável, Journal and remarks (The voyage of the Beagle), publicado em 1839.
Em março de 1837, ele passou a fazer anotações sobre a transmutação das espécies, um costume que resultaria nos cadernos da transmutação. Sua pretensão era converter todas essas anotações em uma ampla e detalhada teoria da evolução – empreendimento ao qual ele deu o título de Seleção natural.
Em setembro de 1838, para “se distrair”, leu Um ensaio sobre o princípio da população, do clérigo e estudioso inglês Thomas Robert Malthus (1766-1834) [6]. Embora não concordasse com todos os pontos de vista defendidos pelo autor, a análise demográfica contida no livro foi uma grande inspiração para Darwin, influenciando-o de modo decisivo.
Segundo Malthus, a população de um país tende a crescer mais rapidamente do que a base de recursos da qual ela se alimenta. Tal descompasso implicaria em fome, miséria e conflitos, e ajudaria a explicar a sucessão de surtos que caracterizam a história humana: períodos de crescimento populacional são sucedidos por episódios durante os quais algum surto de mortalidade elevada ceifa a vida de uma parcela expressiva da população. A duração e a intensidade dessas crises seriam proporcionais ao descompasso entre o tamanho da população e a base de recursos.
Não havia motivos para restringir a análise malthusiana às populações humanas. Afinal, a multiplicação é um fenômeno universal. Generalizando, então, poderíamos dizer que o crescimento de toda e qualquer população é constantemente inibido por forças restritivas. O aparente equilíbrio da natureza – a estabilidade numérica das populações – ocultaria assim um entrechoque entre duas grandes forças: a produção de muitos novos indivíduos e a destruição de quase todos eles. O que varia são as fontes de destruição (e.g., escassez alimentar, inimigos naturais etc.).
Em 1842, Darwin escreveu um primeiro esboço completo a lápis. Em 37 páginas, reuniu pela primeira vez a miríade de temas e questões em torno dos quais vinha trabalhando tão insistentemente. Reescreveu esse esboço mais de uma vez. Em meados de 1844, o esboço havia se convertido em um ensaio com 189 páginas. Encaminhou o manuscrito para um copista; no final de setembro, recebeu o material de volta, ocupando agora 231 páginas. Em seguida, a cópia foi enviada ao jovem botânico Joseph Dalton Hooker (1817-1911), já então um dos seus interlocutores mais íntimos.
Vestígios da criação
Em outubro de 1844, Londres foi sacudida por uma grande novidade: o livro Vestiges of the natural history of creation (J Churchill, 1844), publicado anonimamente. Foi um sucesso e tanto, edição atrás de edição. O autor era o geólogo e editor escocês Robert Chambers (1802-1871); sua identidade, no entanto, só seria revelada postumamente, na 12ª edição (1884).
Hooker gostou do livro, mas Darwin não o via com bons olhos – a geologia e, sobretudo, a zoologia ali contidas lhe pareciam particularmente ruins. Com as reedições, o livro foi sendo remendado; erros e mal-entendidos foram suprimidos; o texto foi ficando mais sério e o impacto cultural foi se ampliando. O próprio autor, entretanto, o via como uma mera extravagância, preferindo permanecer no anonimato.
Aos olhos de Darwin, o anonimato era mais uma demonstração de que, dado o conturbado contexto cultural e político da época, ele próprio deveria ter mais cuidado na divulgação de suas ideias evolucionistas.
O seu Journal and remarks (1839) foi um sucesso e Darwin continuou escrevendo e publicando com regularidade – entre 1842 e 1854, por exemplo, ele publicaria sete livros: The structure and distribution of coral reefs (1842), Geological observations on the volcanic islands visited during the voyage of H. M. S. Beagle (1844), Geological observations on South America (1846) e mais os quatro volumes de sua monografia sobre as cracas (1851-1854).
A carta que veio da Indonésia
Em 1858, transcorridas duas décadas desde que começara a colocar no papel suas ideias sobre a transmutação, Darwin ainda estava a mexer no manuscrito de Seleção natural. Correções, acréscimos, remoções, novos exemplos – o trabalho parecia não ter fim.
Tudo mudou depois de 18 de junho…