Chile: 50 anos após golpe militar, sociedade está desorientada, diz sociólogo
Dividido, tenso, polarizado: estes são alguns dos adjetivos ouvidos no Chile para descrever o clima político que antecedeu o marco de 50 anos do golpe militar que derrubou o presidente Salvador Allende, em 11 de setembro de 1973.
As tensões ficaram evidentes em todos os setores da sociedade, incluindo o governo e o poder legislativo.
O Ministério da Cultura do país, encarregado das celebrações, teve três titulares e o assessor presidencial para o evento renunciou ao cargo em julho.
No Congresso, as divergências chegaram ao auge em uma sessão realizada em agosto, quando a direita e a ultradireita saíram em apoio à declaração parlamentar de cinco décadas atrás, que acusou Allende (1908-1973) de romper a ordem constitucional – poucos dias antes da sua deposição e morte.
Parte dos representantes do governo e da esquerda abandonou o salão durante o anúncio, enquanto outros exibiam fotos de pessoas desaparecidas na ditadura, pedindo “justiça, verdade, não à impunidade”.
As redes sociais também refletem o grande abismo que separa as pessoas que defendem o golpe liderado por Augusto Pinochet (1915-2006) dos seus detratores e milhares de vítimas.
A poucos dias da celebração, os partidos ainda não conseguiam chegar a um consenso sobre uma declaração conjunta. E nem mesmo a apresentação do plano nacional de busca de pessoas desaparecidas, no final de agosto, conseguiu reunir as lideranças de todo o espectro político.
O que estará acontecendo no Chile, 50 anos depois do golpe militar?
A BBC News Mundo (o serviço em espanhol da BBC) conversou com Hugo Rojas, doutor em sociologia da Universidade de Oxford, no Reino Unido, e professor de Direitos Humanos da Universidade Alberto Hurtado, em Santiago do Chile.
Para ele, “infelizmente, esta comemoração não está sendo aproveitada como um momento propício para refletir sobre a nossa história recente, nossas dores, aprendizados, lições, recomendações e propostas para o futuro”.
Em 2004, Rojas colaborou com a “Comissão Valech”, criada pelo ex-presidente chileno Ricardo Lagos para identificar pessoas detidas e torturadas por agentes ou pessoas a serviço do Estado sob o regime militar. Ele também contribuiu sobre questões de probidade no primeiro governo da ex-presidente Michelle Bachelet, entre 2006 e 2010.
Rojas é o autor do livro Past Human Rights Violations and the Question of Indifference: The Case of Chile (“Violações dos direitos humanos do passado e a questão da indiferença: o caso do Chile”, em tradução livre). Publicado em 2022, o livro é descrito pela editora britânica Palgrave MacMillan Cham como “a primeira análise científica sobre a indiferença ante as sistemáticas violações em massa dos direitos humanos em uma sociedade polarizada”.
Confira abaixo a entrevista concedida pelo professor Hugo Rojas à BBC News Mundo.
BBC News Mundo – Como o sr. observou os dias que antecederam a celebração dos 50 anos do golpe militar no Chile?
Hugo Rojas – Pensei que este poderia ter sido um momento para nos observarmos enquanto sociedade e reconhecer as tragédias, as profundas feridas que temos no Chile e tratar de compreendê-las.
Mas, como essas verdades, essas feridas, não são conhecidas por toda a sociedade, não foi possível nem aprender a respeito, nem formar um consenso.
Acredito que o mais grave é que, na sociedade chilena, não existe uma cultura dos direitos humanos.
Na minha tese de doutorado, estudei uma pesquisa nacional e concluí que, no país, apenas 38% das pessoas adultas têm compromisso com os direitos humanos e a justiça de transição [a forma como as Nações Unidas descrevem os processos e mecanismos para abordar as consequências de um passado de abusos em grande escala].
Por outro lado, existem 28% que são hostis a estes conceitos e, depois, temos outros dois grupos muito interessantes.
Um grupo de 16% é claramente indiferente: não quer saber, falar os incomoda, não quer perguntar. E outros 18% são ambivalentes – eles prestam atenção em algumas coisas, interessam-se em saber que seus filhos recebam educação na escola sobre o que aconteceu na ditadura, por exemplo, mas não concordam em financiar uma lei de locais de memória.
São pessoas que mantêm contradições.
BBC – Quais são as consequências?
Rojas – Isso explica por que demoramos tanto no Chile a acertar nossas contas com o passado e com o processo de justiça de transição.
Tivemos conquistas importantes (como a reparação, memória, justiça e garantia de que não se repita), mas porque elas foram ocasionadas por um grupo da população que dá importância a elas. Mas diversos desafios importantes ainda permanecem.
E, neste grupo, os mais comprometidos são as vítimas e seus familiares, que contaram com a colaboração de algumas pessoas mais sensíveis ou dirigentes políticos que apresentaram suas exigências para debate público.
O que quero transmitir é que existem setores da nossa sociedade que estão incomodados com a celebração dos 50 anos, que acham muito problemático iniciar conversações, porque acreditam que existem muitas pessoas que poderiam se queixar, reclamar e considerar inadequado.
Estas são as dificuldades habituais que enfrentamos ao tentar trabalhar pela justiça de transição no Chile. Às vezes, conseguimos convencer as pessoas, mas fracassamos na maior parte do tempo.
BBC – O sr. também mencionou que falta conhecimento sobre o que aconteceu.
Rojas – Observo que os processos de socialização sobre o que aconteceu na ditadura fracassaram.
Porque você precisa convidar as pessoas para conhecer algo que é doloroso. E as pessoas, em um mecanismo de autodefesa e proteção, evitam estas informações que podem ser perturbadoras. A habilidade reside em encontrar os mecanismos para comunicar sobre estes temas.
Também acredito que precisamos ser mais criativos. Este é um desafio para o cinema, a literatura e o jornalismo, pois também é preciso fazer com que estes temas entrem na cultura popular.
Quando você fala com raiva, com denúncia, não atinge o objetivo esperado. É preciso encontrar formas de falar para os indiferentes e para os ambivalentes, sem que eles mudem de canal.
E também falar para os nostálgicos da ditadura, sobretudo para seus filhos, filhas e netos. A Alemanha conseguiu fazer isso com sucesso.
BBC – O que o sr. destacaria do trabalho desenvolvido na Alemanha?
Rojas – Na Alemanha, depois da guerra, instalou-se a necessidade de refletir sobre o sentido da culpa, que o que havia acontecido não foi somente obra dos nazistas, mas sim algo que envolvia toda a sociedade.
Que, sim, uma coisa eram os criminosos, mas outra coisa era a sociedade: o que aconteceu conosco?
Esta é uma reflexão que não ocorreu no Chile. O que aconteceu conosco? Por que fracassamos, enquanto sociedade, com o rompimento da nossa democracia?
Deixamos de viver sob o Estado de Direito por anos, sem reconhecer os direitos humanos. Esta é uma reflexão poderosa.
Quando você reconhece a culpa, é preciso esclarecer o que aconteceu, fazer com que a verdade seja conhecida. É preciso que esta verdade esteja presente.
Na Alemanha, existem mais de 70 mil placas de bronze pelos caminhos, que representam as “pedras de tropeço”. Elas estão posicionadas no lado de fora dos lugares onde uma pessoa foi detida ou executada.
Não temos estas coisas no Chile. Existem muito poucas exceções.
BBC – Existem pessoas que irão se perguntar por que devem assumir a culpa de fatos dos quais não participaram, por fatos ocorridos antes mesmo que elas tivessem nascido…
Rojas – Na Alemanha, este é um assunto público. E é considerado um tema intergeracional.
Para nós, no Chile, este é um assunto privado, particular da vítima e do perpetrador.
Esta é uma grande diferença. Porque, quando você considera o tema como assunto público, é preciso estudá-lo na escola, analisá-lo a sério, é preciso observar o que aconteceu – no caso da Alemanha, observar as origens do antissemitismo.
Aqui no Chile, não existe ensino de reflexões culturais nas escolas. E também enfrentamos os tabus.
BBC – Qual o peso da falta de informação sobre o que aconteceu?
Rojas – Esta poderia ter sido uma discussão deste ano. Qual incentivo têm as pessoas para romper os pactos de silêncio? Nenhum.
Na África do Sul, eles disseram: “muito bem, vamos anistiar você se você declarar em público, às claras, mostrar arrependimento, explicar os fatos, explicar sua participação, se pedir perdão às vítimas e aos povos da África do Sul, nós vamos perdoar você e não vamos colocar você na cadeia”.
Eles optaram por este caminho, pois queriam que a verdade fosse conhecida e que as pessoas que cometeram os crimes pedissem perdão.
Nós optamos por manter estes assuntos nos tribunais. E ali estão os juízes, que também precisam de mais recursos para resolver estas 2.040 causas de direitos humanos pendentes…
Ou, caso contrário, a solução chilena seria de impunidade biológica, já que os acusados, os réus, irão morrer. E também irão morrer as vítimas e seus familiares mais diretos.
No Chile, seria bom discutir, legal e politicamente, quais incentivos podem ser oferecidos para que as pessoas forneçam as informações que elas detêm.
BBC – O que foi diferente nesta celebração dos 50 anos em relação aos aniversários anteriores?
Rojas – Foi diferente.
Na ocasião dos 30 anos, em 2003, o então presidente Ricardo Lagos deu um discurso chamado “Não existe amanhã sem ontem”.
Ele defendeu um plano com metas concretas, anunciando a criação de uma comissão sobre prisões políticas e torturas.
Ele reconheceu que, nos primeiros 13 anos da transição, o tema das vítimas de tortura não havia sido abordado pelo Estado. Não era algo simples. Pinochet estava sendo investigado pelo juiz [Juan] Guzmán.
O cenário mudou em 2013, no governo do presidente Sebastián Piñera, para os 40 anos. Mas, embora a forma de refletir do Estado tenha sido fraca, houve muita atividade na sociedade civil.
Houve importantes séries de televisão sobre o assunto, começaram a surgir publicações, investigações jornalísticas, mais sentenças foram publicadas e havia mais material.
Eu pensei que, em 2023, continuaríamos nesta tendência. Já tínhamos o Museu da Memória e o Instituto Nacional de Direitos Humanos, mas, agora, estamos congelados. Estamos caminhando na ponta dos pés.
BBC – O que o sr. quer dizer com isso?
Rojas – Acredito que fomos nocauteados pelos protestos [de 2019] e ainda estamos tentando entender o que aconteceu. Essa explosão, essa rebelião foi traumática para muitos setores da sociedade…
Depois, a pandemia nos congelou. E então começa um processo constituinte que não chegou a nenhum resultado.
Fracassamos na primeira tentativa e não estou otimista quanto à segunda porque, hoje, as pesquisas demonstram que a maioria da população, neste momento, reprovaria a proposta de uma nova Constituição que ainda não conhecemos.
Acredito que a sociedade chilena está desorientada, não temos um norte claro. Qual é o projeto de país, quais são as normas básicas que nos congregam?
Estamos nocauteados. Estamos demorando a nos colocar de pé. Ficamos atordoados.
E isso coincide com a comemoração dos 50 anos. Uma sociedade atordoada prefere não falar destes assuntos porque não está preparada.
BBC – O sr. acredita que tenha sido uma espécie de “tempestade perfeita”?
Rojas – Mais que uma tempestade perfeita, estamos em um redemoinho com diversas correntes que deixam os cidadãos perplexos.
BBC – Uma pesquisa do CERC (Centro de Estudos da Realidade Contemporânea) e do instituto MORI indica que o percentual de pessoas que acreditam que houve uma razão para o golpe de Estado de 1973 caiu de 36% em 2003 para 16% em 2013, mas voltou para 36% em 2023. Como o sr. vê a figura de Pinochet depois de 50 anos?
Rojas – Acredito que a figura de Pinochet seja cada vez mais rechaçada, porque estamos sabendo mais sobre o que ele fez. Na verdade, os setores pinochetistas são cada vez mais reduzidos.
O apoio à sua figura não é majoritário e vem se reduzindo com os anos de transição. O apoio foi de 44% no plebiscito de 1988 e este percentual foi diminuindo.
Outra coisa é que, quando estamos em uma sensação de desamparo, de estar frente a um turbilhão, as pessoas dizem que precisam de uma figura forte, autoritária, que estabeleça a ordem. Este sentimento pode estar crescendo e a figura de alguém com poder talvez esteja se tornando mais atraente.
Não é possível fazer Pinochet renascer, mas pode ser que se procure alguém com perfil similar. Isso me preocupa.
BBC – Definitivamente, existe mais divisão nos 50 anos ou esta é a divisão que sempre existiu?
Rojas – Continuamos divididos entre aqueles que atribuem importância aos direitos humanos, os que preferem não conversar a respeito e aqueles que, infelizmente, oferecem justificativas ao que aconteceu na ditadura.
BBC – Todos os anos de transição não conseguiram mudar isso?
Rojas – Não. E a sociedade chilena continua se segmentando.
Não é uma sociedade inclusiva. Ela está repleta de barreiras invisíveis onde não há conversas entre quem pensa diferente.
Não aprendemos na escola a dialogar com respeito e tolerância em espaços onde há diferenças. Por isso, as pessoas semelhantes se congregam nas escolas, nas universidades e nas empresas. E os espaços que valorizam a diversidade e as diferenças estão diminuindo.
BBC – Existe algum sinal de esperança?
Rojas: Acredito que pode surgir esperança se conseguirmos um acordo transversal para redigir uma Constituição que faça sentido para a maioria dos cidadãos.
Espero que se consiga elaborar um marco normativo com o qual a sociedade chilena esteja de acordo. Que um dos grupos não o imponha ao outro.
BBC – O governo acaba de lançar o Plano Nacional de Busca de vítimas de desaparecimento forçado sob o regime Pinochet. Qual impacto o sr. acredita que o plano irá trazer ao ambiente da celebração?
Rojas – Este anúncio é muito importante. E um dos pontos valiosos é que ele foi um trabalho participativo com as associações de familiares. Os familiares puderam opinar, foram realizadas reuniões em todo o país para fortalecer o plano.
A busca é imprescindível para uma sociedade. Todos nós deveríamos apoiar para que os restos sejam encontrados. Todos os setores.
BBC – O sr. acredita que será parte do legado do presidente Gabriel Boric?
Rojas – Sim, e é muito importante. Será parte do seu legado, mas a eficácia do plano dependerá da vontade de todos os setores, contribuindo para que ele traga frutos.
Este trabalho exige liderança política para convidar a sociedade civil a fazer parte, pois todos nós precisaremos olhar no espelho e perguntar: “Como estou colaborando para encontrar os restos desaparecidos?”
Recebo o anúncio deste plano com aplausos.