Quem seriam Cosme e Damião, os médicos gêmeos da Antiguidade que se tornaram santos

Pintura antiga mostra pessoa sendo operada
Obra provavelmente do século 16 retrata o suposto transplante de perna que os santos teriam realizado de forma milagrosa

Por: Edison Veiga

Eles integram a longa lista de santos católicos que ganharam o culto popular após o martírio, naqueles primeiros séculos em que o governo romano perseguia e executava cristãos. E, justamente porque não há documentação histórica, o que se sabe sobre eles é baseado na tradição, apenas.

Contudo, esta tradição é, sim, documentada. E começou há muito tempo, no coração de Roma. “A única coisa que sabemos historicamente sobre os dois é que o culto a eles, santos e mártires, começou entre o século 4º e o 5º. Há muita evidência sobre o culto”, explica à BBC News Brasil o vaticanista Filipe Domingues, vice-diretor do Lay Centre, em Roma, e professor na Pontifícia Universidade Gregoriana, também em Roma.

O escritor e teólogo J. Alves, autor do livro ‘Os Santos de Cada Dia’, ressalta à reportagem que a dupla faz “parte da vasta lista de mártires cristãos da Igreja primitiva” e que “viveram provavelmente entre o primeiro e o terceiro séculos da era cristã”.

Ele acrescenta que a memória deles só chegou ao tempo presente porque sempre houve o costume, dentro da Igreja, de “assinalar os nomes dos mártires” e “celebrar seus testemunhos de fé em Jesus” nas celebrações litúrgicas e no ofício divino. “No decorrer dos séculos e de acordo com a visão de cada época, a religiosidade popular recolheu, na mesma narrativa, ficção e fatos considerados genuinamente históricos, sobre suas vidas.”

“O ‘Martirológio Romano’ [catálogo de santos e mártires organizado pela Igreja Católica] é a melhor fonte para a prova da existência deles”, defende à BBC News Brasil o pesquisador José Luís Lira, fundador da Academia Brasileira de Hagiologia e professor na Universidade Estadual Vale do Aracaú, no Ceará. No livro, eles são apresentado como “mártires que, segundo a tradição, exerceram a medicina […] sem pedir nunca remuneração e curando a muitos com os seus cuidados gratuitos”.

Homem caído no chão
Obra de Gerard Seghers, do século 17, retratando Cosme e Damião

Eles também estão registrados na obra ‘Legenda Aurea’, conjunto de narrativas sobre a vida de santos reunidas, por volta do ano de 1260, pelo então arcebispo de Gênova, Jacopo de Varazze (1229-1298). O livro apresenta Cosme como um modelo para os outros, “ornado de virtudes”, “puro de todo vício”. E Damião como alguém que “teve comportamento manso e doutrina elevada”, além de ter sido “a mão do Senhor que cura como remédio”.

A mais antiga basílica dedicada aos santos, na região do Foro Romano, foi erguida no século 4º — há quem acredite que sua construção tenha começado no ano de 309, mas o outros a situam na primeira metade do século 6º. “É com base nisso que a gente pode voltar para trás para chegar à história deles, aí com base na tradição”, argumenta Domingues.

A maior parte dos relatos sobre eles diz que eram irmãos, e geralmente afirma-se que eram gêmeos. Acredita-se que eles tenham nascido onde hoje é a atual Turquia — ou, segundo algumas fontes, na região da Síria — e tenham atuado como médicos da época, perambulando e curando doentes. Com uma particularidade importante: não aceitavam pagamento por seus préstimos.

“É consenso, nas várias narrativas, que Cosme e Damião eram irmãos gêmeos e praticavam a arte da cura, ou seja, a medicina”, pontua Alves.

“Pela tradição, eram médicos cristãos marcados pela habilidade da profissão da medicina. E não recebiam nada em troca pelo trabalho”, corrobora à BBC News Brasil o pesquisador Thiago Maerki, associado da Hagiography Society, nos Estados Unidos.

Maerki explica que isso faz com que Cosme e Damião sejam integrados ao rol dos chamados “santos anárgiros”. “Anárgiro significa inimigo do dinheiro”, contextualiza. “Há uma tradição de santos que negavam o dinheiro, não aceitavam e combatiam a riqueza.”

Evangelização e perseguição

Essa atuação, em forma de caridade, era acompanhada de evangelização. “Ao cuidarem dos outros de forma gratuita, eles difundiam a fé cristã”, afirma Domingues. “Por causa disso, acabaram ficando conhecidos.”

Não necessariamente isso era uma coisa boa, naqueles tempos. A crescente popularização deles teria despertado o interesse do imperador Diocleciano (243-311), justamente o responsável pela mais sangrenta perseguição aos cristãos. Assim, Cosme e Damião teriam sido executados, como mártires, provavelmente no ano 300. Segundo o livro ‘Il Santo Del Giorno’, de Mario Sgarbossa e Luigi Giovannini, a morte deles teria ocorrido na antiga cidade de Cirro, na Síria — hoje, em ruínas.

Alves diz que essa “grande fama” decorrente das curas “sem nada cobrar” contribuiu para atrair muitos “à fé cristã”. De acordo com sua versão, isso incomodou o governador de sua região e este haveria determinado a morte da dupla, depois de torturas.

Pintura antiga mostra dois homens com frascos
Representação dos santos médicos datada do início do século 16

A maneira como os dois foram mortos também conta com detalhes diferentes conforme o relato. Mas todos parecem concordar que, depois de eles sobreviverem a uma série de suplícios, acabaram sendo mortos com golpes de espada.

Descreve o ‘Il Santo Del Giorno’ que “condenados à lapidação, as pedras voltavam contra os perseguidores; foram colocados no paredão para que quatro soldados os atravessassem com setas, mas os dardos voltavam para trás e feriam a muitos, porém os santos nada sofriam”.

“Foram obrigados a recorrer à espada para decapitação, honra reservada só aos cidadãos romanos”, prossegue o livro.

Doces para crianças

Muitos conhecem São Cosme e Damião pelo hábito popular que relaciona a dupla a ideia de presentear crianças com doces, principalmente no dia a eles dedicado — anteriormente e, em alguns lugares ainda por tradição, o 27 de setembro; desde 1969, segundo a Igreja Católica, em 26 de setembro.

Domingues aponta que esse costume é tipicamente brasileiro — e uma das explicações seria pelo sincretismo deles com religiões de matriz africana. O teólogo Alves explica que os antigos escravizados no Brasil, como forma de camuflar suas crenças, passaram a asscoiar seus orixás crianças, os Ibeijis, que também são gêmeos, aos santos católicos Cosme e Damião.

Pintura antiga mostra homem com livro na mão
São Cosme, em pintura de Bartolomeo Vivarini, datada do século 15

“Na matriz religiosa africana, eles são filhos de Xangô e Iansã”, detalha. “Estão associados não apenas à força da natureza que faz brotar e sustenta a vida, mas também à festa, à alegria coletiva, ao divertimento e às brincadeiras infantis.”

Lira interpreta a tradição dos doces “quase como um ex-voto, ou seja, um agradecimento aos santos por um milagre”. “Como eles são venerados nas religiões, afro, nelas há um sentido de oferenda. Mas o importante é que, independentemente de religião, se oferece doces às crianças, e isso faz com que a tradição se perpetue”, acrescenta ele.

Interessante notar que se houve, no Brasil, um sincretismo dos santos católicos com os orixás do candomblé, há quem acredite que a origem mítica de Cosme e Damião tenha a ver com outro sincretismo: o dos deuses pagãos do mundo antigo com o cristianismo ainda em fase inicial.

“No século 6º havia uma forte tendência de adaptar certos cultos pagãos para o cristianismo. Segundo alguns estudos, foi nessa época que houve a transposição da veneração de algumas figuras ligadas à tradição da medicina e da cura, para os santos cristãs”, diz Maerki. “A ideia dos médicos santos e mártires teria sido uma espécie de adaptação dessa tradição pagã de veneração de divindades de cura.”

Entre as figuras que teriam inspirado tais narrativas, está o deus helenístico-egípcio Serápis e Esculápio ou Asclépio, o deus da medicina tanto na mitologia grega quanto na romana.

Pintura antiga mostra homem com instrumentos na mão
São Damião, em pintura de Bartolomeu Vivarini, datada do século 15

Cura milagrosa

Se eles realmente atuavam como médicos ancestrais, em um tempo de parcos conhecimentos, é de se imaginar como isso acabava garantindo um terreno fértil para narrativas milagrosas. E, ao longo dos séculos, esses relatos cresceram em proporção e em detalhes.

Maerki destaca um dos mais famosos, o do transplante de uma perna. Uma das versões afirma que teria ocorrido já após a morte da dupla, depois que um sacristão acometido de hanseníase havia sonhado que era curado pelos santos. Outra narrativa conta que o suposto milagre teria sido praticado pessoalmente pelos dois, em vida.

“O sacristão padecia da enfermidade e sua perna estava toda corroída”, relata Maerki. “Os irmão então teriam amputado sua perna apodrecida e transplantado no lugar o membro de um africano que havia morrido há pouco.”

Pintura antiga mostra dois homens
Ícone ortodoxo dos santos Cosme e Damião, de autoria desconhecida

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