‘O fim está próximo’: no que acreditam as Testemunhas de Jeová
Estudiosos de religião afirmam que nenhuma igreja tem um entendimento tão literal do livro do Apocalipse — o último da Bíblia cristã — quanto as Testemunhas de Jeová. Para eles, o fim do mundo está próximo, em um processo que já começou em 1914, e apenas 144 mil herdarão o Reino dos Céus.
Mas todos os homens e mulheres de bem terão o Reino de Deus aqui na Terra, que será reconstruída. E ficará como aquelas imagens de folhetos que os membros dessa denominação cristã distribuem porta a porta: prados verdejantes, céu azul, água límpida, crianças em harmonia brincando com animais, adultos confraternizando.
Segundo a doutrina das Testemunhas de Jeová, isto ocorreria porque o livro do Apocalipse cita três vezes 144 mil eleitos — marcados com um selo.
Aos demais, conforme a interpretação dos membros dessa igreja, estaria reservada uma espécie de paraíso na própria Terra, então restaurada.
“É desta forma que elas [as testemunhas de Jeová] compreendem o trecho da oração ‘Pai Nosso’ que diz ‘como no céu, assim também na terra'”, explica à BBC News Brasil o filósofo Cleberson Dias, doutor em ciências da religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e autor de um estudo de mestrado sobre essa denominação cristã.
Entre outras peculiaridades dos que seguem a igreja, estão o veto à transfusão de sangue, a negação de prestar serviço militar obrigatório — a não ser em casos que a legislação local não permita — e a abstenção nas eleições políticas. Normalmente, testemunhas de Jeová também não comemoram seus aniversários e feriados como Natal e Páscoa.
Dados do Anuário 2022 das Testemunhas de Jeová afirmam que a instituição conta com 86 sedes e quase 118 mil congregações espalhadas pelo mundo. Seriam mais de 8,5 milhões de membros.
Preceitos básicos
De acordo com informações oficiais da própria igreja, as testemunhas de Jeová são cristãs, mas “de muitas maneiras, somos diferentes de outros grupos religiosos chamados cristãos”.
Eles enfatizam que buscam “seguir de perto os ensinamentos” de Cristo, acreditam que “não existe salvação sem Jesus”, são batizados “em nome de Jesus”, oram “em nome de Jesus” e acreditam que “Jesus é o cabeça, ou seja, ele recebeu autoridade sobre todos os homens”.
Contudo, ao apontar as diferenças básicas, as Testemunhas de Jeová ressaltam sua crença de que “Jesus é o Filho de Deus, não parte de uma Trindade” — em geral, o cristianismo costuma defender que Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo são uma coisa só.
E lembram que acreditam que “a alma não é imortal e não existe nenhuma base bíblica para dizer que Deus tortura as pessoas eternamente num inferno”.
A igreja resume em 15 suas crenças principais. Entendem como “único e verdadeiro” o Deus “de Abraão, Moisés e Jesus”; reconhecem a Bíblia como “a mensagem inspirada de Deus para os humanos”; creem em Jesus como salvador e filho de Deus, mas não como “Deus Todo-Poderoso”; acreditam que o Reino de Deus seria “um governo real no céu” que “substituirá os governos humanos e realizará a vontade de Deus para com a Terra” — e “isso acontecerá em breve”; a salvação é decorrente da “fé em Jesus”, da mudança de vida e do batismo; “um pequeno número de pessoas (144 mil) serão ressuscitadas para a vida no céu”; no futuro, a Terra será restaurada como “lar da humanidade para sempre”, com as pessoas abençoadas “com saúde perfeita e vida eterna”.
Para esses fiéis, a maldade e o sofrimento são decorrentes do fato de que o anjo rebelado que teria se tornado Satanás conseguiu convencer “o primeiro casal humano a se juntar a ele nessa rebelião”.
“As consequências disso têm sido desastrosas para os descendentes desse primeiro casal”, prossegue o texto oficial.
As testemunhas de Jeová acreditam que a morte significa o fim da existência da pessoa, mas que “Deus vai trazer bilhões de pessoas de volta à vida por meio da ressurreição”, enquanto “os que se recusam a fazer o que Deus quer serão destruídos para sempre”.
Eles defendem como única possibilidade a família heteronormativa, dizem que se trata do “padrão original de Deus para o casamento”; não adoram “a cruz nem qualquer outra imagem”; são organizados em congregações sem cobrança de dízimo nem coleta, financiadas sempre por doações anônimas; têm as mesmas crenças em qualquer parte do mundo.
O penúltimo ponto enumerado pela lista de crenças básicas diz respeito ao “modo de agir”.
“Nós nos esforçamos para não ser egoístas, mas agir com amor em todos os assuntos”, pontua.
“Evitamos práticas que desagradam a Deus, incluindo o mau uso do sangue por meio de transfusões. Somos pacíficos e não participamos de guerras. Respeitamos os governos e suas leis, desde que não entrem em conflito com as leis de Deus.”
Por fim, o último preceito é o que norteia o “relacionamento com outros”.
Eles lembram do mandamento cristão do amor ao próximo e da frase dos evangelhos que diz que os cristãos “não fazem parte desse mundo”.
Assim, justificam a abstenção em “assuntos políticos” e o distanciamento de “outros grupos religiosos”.
Justificativas
“O sentido literal que atribuem ao texto do Apocalipse e aos 144 mil que herdarão o Reino dos Céus, cabendo às outras pessoas herdar a Terra, torna as Testemunhas de Jeová uma religião com características sui generis. Mas há uma série de características personalíssimas”, comenta o especialista Dias.
Professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie, o teólogo e historiador Gerson Leite de Moraes contextualiza à reportagem que boa parte das peculiaridades que norteiam a visão doutrinária das Testemunhas de Jeová tem a raiz no fato de que eles se autodefinem como “restauracionistas”.
“Essa ideia de restauração de uma verdade que supostamente teria sido corrompida, ao longo do tempo, pelas igrejas cristãs. Eles teriam a verdade a partir de suas interpretações específicas [das escrituras], vivem em um sistema de negação de tudo o que foi produzido ao longo do tempo enquanto doutrina pela Igreja Católica e, depois, pelas protestantes. Seriam erros, segundo eles”, afirma.
Dentro desse escopo, empreenderam uma tradução própria da Bíblia, a Tradução do Novo Mundo das Escrituras Sagradas, cuja primeira edição foi publicada em inglês em 1950.
Há algumas idiossincrasias curiosas, como a opção por se referir à cruz como “estaca de tortura” — termo que eles preferem no famoso trecho do evangelho de Mateus em que Jesus teria dito aos seus discípulos para carregar “sua cruz” e segui-lo.
Também há nuances teológicas.
No início do evangelho de João, por exemplo, quando ele diz que “o Verbo se fez carne e habitou entre nós”, referindo-se ao nascimento de Jesus, o texto tradicionalmente aceito pelas demais igrejas cristãs começa afirmando que “o Verbo era Deus”. Na tradução das Testemunhas de Jeová, afirma-se que “a Palavra” era “um Deus”.
“Faz toda a diferença, porque Jesus, na tradição das Testemunhas de Jeová, não é da mesma substância que o Pai.
Ele é a primeira testemunha, a mais importante, que esteve presente quando Jeová estaria criando todas as coisas”, comenta Moraes.
“Eles negam a Trindade.”
Já a justificativa para não prestarem serviço militar obrigatório nem aceitarem jurar a bandeira se baseia na ideia de que Deus deve ser o único senhor. “Eles não gostam de serem vistos como pacifistas”, diz Moraes.
“Mas dizem que quando Satanás luta contra Satanás em uma guerra de um governo político contra o outro, eles podem permanecer neutros, pois aguardam a única guerra final que os concerne: a batalha final quando Cristo vai mobilizar os exércitos de Jeová para a vitória final contra Satanás.”
Dias acrescenta que, para as Testemunhas de Jeová, não há distinção entre a vida religiosa e a prática cotidiana.
“Todas as testemunhas de Jeová devem trocar, enquanto isso é legalmente possível ou permitido, a subserviência ao Estado, por exemplo, o serviço militar, por aquela outra, a Jeová”, afirma ele.
“Assim, não participam da política e também não se envolvem em guerras de nações.
Também não votam nas eleições, nem participam de comemorações cívicas e devem evitar empregos na polícia. Sua postura pode ser entendida como de neutralidade política, de amor à comunidade e de obediência única e exclusiva a Jeová-Deus.”
A legislação brasileira permite que o cidadão requeira dispensa do serviço militar alegando “convicção religiosa”.
Já nas eleições, os seguidores dessa igreja costumam anular ou votar em branco.
“Uma ex-aluna, testemunha de Jeová, me confidenciou que, nas últimas eleições para a presidência do Brasil, havia optado por não anular ou votar em branco”, conta Dias.
“Sua consciência e a percepção do [que ela chamou de] ‘horror’ a levaram à oposição ao governo [do então presidente e candidato à reeleição Jair] Bolsonaro (PL).”
A negativa em doar e receber sangue por meio de transfusões baseia-se num entendimento de que no sangue está a vida, está parte da alma da pessoa.
“Dar isso para alguém significa dar parte da alma, o que impediria depois que a pessoa cumprisse o mandamento de amar a Deus com toda a sua alma. Ao mesmo tempo, receber sangue de outro pode contaminar sua alma com a alma que não é a sua”, explica Moraes.
Dias lembra ainda do fato de que as testemunhas de Jeová não celebram aniversários “porque consideram isso como algo errado”, em virtude do fato de que a origem dessas festas seriam pagãs, “em seus primórdios, associada ao afastamento de maus espíritos que tinham, naquela data, a oportunidade de prejudicar o aniversariante, sendo que a presença e o cumprimento dos amigos seria uma forma de afastar essa influência.”
A origem em rituais pagãos também é a justificativa por eles não comemorarem o Natal e a Páscoa, festas que historicamente foram ressignificadas pelos antigos cristãos.
Origem
O nome Testemunhas de Jeová é uma referência a um trecho do livro de Isaías, do Antigo Testamento, em que a narrativa coloca Deus chamando o povo de “minhas testemunhas”.
No caso, eles usam a palavra Jeová, em alusão à maneira como o nome de Deus aparece nas escrituras hebraicas, pelo tetragrama YHWH.
Em português, convencionou-se ler estas letras como Javé ou Jeová — os seguidores das Testemunhas de Jeová preferiram a segunda forma.
“Como [para os hebreus] Deus havia proibido que o nome dele fosse pronunciado, havia todo um ritual e várias formas de qualificá-lo quando um sacerdote precisava se referir a ele”, explica Moraes.
“O tetragrama foi uma solução de grafia. Como não se pronunciava, ninguém sabe como se pronuncia, se Javé ou Jeová… Mas o fato é que eles [as Testemunhas de Jeová] acabaram se apropriando do nome de Deus no Antigo Testamento.”
A igreja nasceu nos Estados Unidos da segunda metade do século 19.
De origem adventista, Charles Taze Russell (1852-1916) é considerado o primeiro líder. Nos anos 1870, ele encabeçou um grupo de religiosos no estado americano da Pensilvânia. Autodenominavam-se Estudantes da Bíblia.
O objetivo deles era encontrar o que chamavam de “erros doutrinais” em outras denominações religiosas.
Em 1879, eles começam a publicar uma revista chamada Zion’s Watch Tower and Herald of Christ’s Presence para divulgar essas informações. A publicação existe até hoje — chama-se A Sentinela, em português; The Watchtower, na versão em inglês.
Para o teólogo Moraes, o primeiro número dessa revista é “a certidão de nascimento” da igreja.
“As colônias britânicas da América do Norte nasceram profundamente influenciadas por ideais de liberdade, com uma multiplicidade de visões religiosas cristãs [trazidas pelos imigrantes colonizadores]. É uma terra destinada a essa temática e o século 19 traz à tona uma série de religiões com um caráter norte-americano muito evidente”, contextualiza Moraes.
“O grupo [que acabou se formando] era composto por pessoas de influências diversas. De certa forma, um conglomerado de visões religiosas. E dessa composição, desse caldo todo, acabaria nascendo o campo doutrinário das Testemunhas de Jeová”, analisa Moraes.
O nome Testemunhas de Jeová só surgiria em 1931, quando eles buscavam uma denominação menos vaga do que Estudantes da Bíblia — expressão que poderia qualificar qualquer grupo de religiosos de outras vertentes também.
O fim está próximo?
Para as testemunhas de Jeová, não só está próximo como já está acontecendo.
“Charles Taze Russel estava convencido de que Jesus estaria voltando em breve. Ele acreditava que haveria uma grande batalha na qual os perversos seriam destruídos para sempre e os bons iriam governar o mundo por 1 mil anos”, escreve a jornalista Peggy Fletcher Stack, membro-fundadora da Associação Internacional de Jornalistas de Religião, em seu livro ‘A World of Faith’ — sem tradução para o Brasil.
No entendimento das Testemunhas de Jeová, o “fim do mundo” “não se refere à destruição da Terra ou de todas as pessoas” — para eles, “a Terra é o lar eterno da humanidade” —, mas sim “ao fim da forma como a sociedade está organizada hoje”.
Nesse sentido, eles acreditam que os maus “serão eliminados” e que “somente as pessoas boas vão viver na Terra”.
E essa destruição ocorrerá “durante a grande tribulação que terminará na guerra do Armagedom”.
Essa “grande tribulação” seria “o tempo mais difícil da história da humanidade”, que também pode ser chamado de “últimos dias”.
Na interpretação da igreja, “Deus vai usar os governos, representados pela Organização das Nações Unidas, para destruir as religiões falsas”, que serão “destruídas numa velocidade impressionante”.
Ao mesmo tempo, “um grupo de nações” tentará “destruir os que praticam a religião verdadeira” — mas estes seriam protegidos por Deus.
Já o Armagedom seria uma grande batalha, “a guerra final entre Deus e os governos humanos”, que “acabará de vez com todos os governos humanos”.
“Não sabemos como Deus usará seu poder, mas ele tem à sua disposição armas como as que usou no passado: granizo, terremotos, enxurradas, fogo e enxofre, raios e doenças”, afirma o texto oficial da igreja.
“Alguns inimigos de Deus ficarão tão confusos que matarão uns aos outros, mas no fim todos vão perceber que é Deus quem está lutando contra eles.”
As Testemunhas de Jeová definem o Armagedom como “uma situação mundial em que os poderes políticos se unirão pela última vez em oposição ao governo de Deus”.
Há uma crença que justificaria a ideia de que este tempo está chegando.
“Eles acreditam que o ano de 1914 marca a expulsão de Lúcifer dos céus, sendo a 1ª Guerra Mundial a primeira consequência visível desse acontecimento: guerras em toda a Terra, fome, terremotos, doenças, crimes, a degradação da própria natureza, a perda da virtude, o enfraquecimento dos laços familiares, a falta de amor a Deus, a vida religiosa demagoga, a indiferença com o próximo, todos estes seriam sinais visíveis da presença de Satanás na terra e do final da Era Comum”, contextualiza o especialista Dias.
“Nesse sentido, o reino de Deus já teria se instalado nos céus, mas não ainda na Terra.”
“As Testemunhas de Jeová acreditam que apenas 144 mil herdaram o reino dos céus. O restante da humanidade herdará uma terra restaurada por Jeová, com o auxílio dos 144 mil ungidos”, prossegue Dias.
“A imagem de uma terra restaurada, onde o ‘lobo pastará com o cordeiro’ e ‘a criança brincará com a serpente que não lhe fará mal algum’ é conhecida do grande público e utilizada com largueza em seus panfletos de divulgação [da igreja].”