‘Falta de independência está por trás de crise de saúde mental em crianças’, diz psicólogo americano

Quatro crianças; elas olham para celulares e tablets
Gray não demonstra uma posição condenatória em relação às telas

Por: Alessandra Corrêa

Nas últimas décadas, vários países vêm registrando taxas crescentes de ansiedadedepressão e até de suicídios entre jovens. Nos Estados Unidos, a crise é tão grave que, em 2021, a Academia Americana de Pediatria e outras organizações médicas pediram que o governo declarasse estado de emergência nacional na saúde mental infantil.

Especialistas debatem as possíveis causas desse problema sem chegar a um consenso. Mas, para o psicólogo americano Peter Gray, que há anos estuda o tema, a atual “epidemia de psicopatologia” em crianças e adolescentes está diretamente ligada a outro fenômeno observado no último meio século: a redução gradual do nível de independência dos jovens.

Em um artigo na edição de setembro da revista médica Journal of Pediatrics, Gray, que é professor pesquisador de psicologia e neurociência no Boston College, universidade na cidade de Boston, argumenta que “uma das principais causas do aumento dos transtornos mentais é a diminuição das oportunidades para crianças e adolescentes brincarem e se envolverem em outras atividades independentes da supervisão e controle direto dos adultos”.

Segundo Gray e seus dois coautores — o psicólogo David Bjorklund, da Florida Atlantic University, e o antropólogo David Lancy, da Utah State University —, as atividades independentes promovem bem-estar mental tanto de forma direta, como fonte de satisfação imediata para a criança, quanto no longo prazo, ao desenvolver resiliência e “as características mentais que fornecem uma base para lidar de forma eficaz com o estresse da vida”.

O artigo cita inúmeras pesquisas, feitas ao longo de décadas, que demonstram tanto a queda gradual na autonomia oferecida aos jovens quanto na sua saúde mental.

“Não estamos sugerindo que seja a única causa do declínio do bem-estar mental dos jovens”, dizem os autores, “mas sim que é uma causa importante”.

Retrato de Peter Gray; o rosto é bem aproximado ele olha para o lado
Peter Gray é professor pesquisador de psicologia e neurociência no Boston College

 

As pesquisas foram feitas principalmente nos Estados Unidos e na Europa, e em alguns países as crianças têm mais independência do que em outros. Mas os autores dizem que esta “é uma crise nacional e internacional, e deve ser tratada como tal”.

O artigo destaca que a mudança começou nos anos 1960. As crianças, antes consideradas competentes, responsáveis e resilientes, passaram a receber cada vez mais supervisão e proteção.

“Ganharam mais autonomia em alguns aspectos, como escolher o que querem vestir ou comer, mas perderam a liberdade para se engajar em atividades que envolvem algum grau de risco e responsabilidade pessoal, longe de adultos.”

Em entrevista à BBC News Brasil, Gray falou sobre os principais motivos por trás da queda na autonomia dada às crianças, como essas mudanças podem impactar sua saúde mental atual e futura, e o que pais e mães podem fazer para ajudar seus filhos a serem mais independentes.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

BBC News Brasil – O senhor diz que uma das principais causas do aumento nas taxas de ansiedade, depressão e suicídio em crianças e adolescentes é o declínio, ao longo de décadas, das oportunidades para realizarem atividades de forma independente, sem a interferência de adultos. Como essas duas tendências estão relacionadas?

Peter Gray – O modo como as crianças desenvolvem confiança, desenvolvem o senso de serem capazes de resolver problemas, de controlar suas próprias vidas, de enfrentar os obstáculos no caminho, é através da experiência de ter controle independente (sobre situações), de ter gradualmente maior independência à medida que crescem.

Portanto, não surpreende que, como não estamos mais oferecendo às crianças esse aumento gradual de independência, elas não estejam desenvolvendo essas características, o sentimento de que podem solucionar problemas, de que, se algo acontecer, conseguem resolver. O tipo de atitude que protege contra ansiedade e depressão.

Temos muitas evidências de que as crianças não estão desenvolvendo essas habilidades. Além disso, e é senso comum, essas atividades também deixam as crianças felizes. Brincar é uma das principais fontes de felicidade para crianças pequenas. Em brincadeiras e atividades independentes, nas quais estão fazendo as coisas por conta própria, elas se sentem bem, orgulhosas, têm a sensação de realização.

Quando as privamos disso, as estamos privando tanto da sensação imediata de felicidade e satisfação quanto da capacidade de desenvolver os traços de caráter, como coragem e o que em psicologia é chamado de locus de controle interno (definido como a tendência de uma pessoa de acreditar que tem controle sobre sua vida e consegue resolver os problemas que aparecerem), que ajudam jovens e até mesmo adultos a enfrentar os desafios da vida.

Então, não deveria causar surpresa que acabar com essas atividades independentes levaria a altas taxas de ansiedade, depressão e até mesmo suicídio.

BBC News Brasil – O senhor menciona uma redução gradual na independência dada às crianças. O que motivou essa mudança?

Gray – Nos últimos 50 a 70 anos houve, pelo menos nos Estados Unidos, um declínio contínuo na liberdade oferecida às crianças, especialmente para brincar, explorar e realizar atividades de forma independente, principalmente ao ar livre.

Há diversas razões para esse declínio, desde a popularização da televisão, nos anos 1950, que trouxe muitas crianças para dentro de casa e as isolou de seus pares, até o desenvolvimento de esportes infantis dirigidos por adultos.

Em vez de sair para a rua e inventar seus próprios jogos, o que era brincar, agora cada vez mais crianças participam de esportes que são controlados não por elas próprias, mas por adultos. Isso é muito diferente de brincar, parece mais com escola, porque estão seguindo regras e decisões feitas pelos adultos. Não estão aprendendo a tomar suas próprias decisões, a resolver as diferenças entre si, a solucionar seus problemas sozinhas.

Outro fator é uma ênfase cada vez maior na performance escolar. O tempo que as crianças passam na escola ou fazendo dever de casa aumentou ao longo dessas décadas.

Além disso, especialmente a partir dos anos 1980, nós desenvolvemos um medo exagerado de deixar as crianças saírem para a rua sem um adulto por perto. Na época, houve dois casos de sequestro e assassinato de meninos que ganharam muita atenção nos Estados Unidos, em 1979 (Etan Patz) e em 1981 (Adam Walsh). Esse tipo de crime era extremamente raro na época, e ainda é raro hoje.

Mas as pessoas passaram a acreditar que era comum, o que levou ao medo de deixar crianças, e mesmo adolescentes, sair sozinhos.

Essa foi uma mudança dramática no estilo parental. Antigamente, os pais mandavam as crianças sair de casa, todas as crianças (da vizinhança) estavam na rua, se conheciam e brincavam juntas. Agora, muitas pessoas veem isso como negligência.

Menina pequena andando em rua
‘O que pode acontecer (…) é uma criança estar na rua, talvez caminhando sozinha para a escola ou brincando num parque, e alguém chamar a polícia”, diz psicólogo americano

BBC News Brasil – Essa percepção é ampliada, nos Estados Unidos, por casos de pais e mães que acabaram perdendo a guarda após deixarem os filhos sair sozinhos, não?

Gray – O que pode acontecer, e aconteceu em tantos casos que passou a assustar muitos pais e mães, é uma criança estar na rua, talvez caminhando sozinha para a escola ou brincando num parque, e alguém chamar a polícia. (A pessoa que faz a chamada) acredita estar fazendo uma boa ação, relatando que uma criança está na rua sem um adulto por perto e provavelmente está em perigo.

Quando a polícia recebe uma chamada dessas, é obrigada a investigar. Então os policiais vão entrevistar os pais, o que é muito assustador, tanto para os pais quanto para a criança. E, em alguns Estados, a polícia é então obrigada a encaminhar o caso para os serviços de proteção infantil que, por sua vez, também são obrigados por lei a investigar.

E, em alguns casos, eles irão ameaçar tirar os filhos dos pais. Se os pais são pessoas brancas de classe média, provavelmente irão contestar essa decisão nos tribunais e vencer. Mas, para pessoas pobres e, muitas vezes, de minorias raciais, há uma chance real de perder a guarda dos filhos.

Diante disso, mesmo pais que acham uma boa ideia deixar seus filhos ter mais independência e sair para a rua sozinhos têm medo de fazer isso, medo de que alguém chame a polícia.

Eu faço parte de uma organização chamada Let Grow (Deixe Crescer, em tradução livre) e estamos trabalhando em vários Estados para criar o que chamamos de leis de independência razoável, que basicamente dizem que cabe aos pais, e não ao Estado, determinar o que é seguro ou não para seus filhos, com a exceção de atividades obviamente perigosas.

BBC News Brasil – Seu artigo cita não apenas um declínio nas oportunidades para brincar de forma independente, mas também nas contribuições das crianças à família e à comunidade.

Gray – Não é apenas brincar na rua e explorar, mas também há menos oportunidades para empregos de meio período. (No passado, nos Estados Unidos) as crianças costumavam entregar jornais de manhã, ou cuidar das crianças (menores) dos vizinhos depois da escola, cortar a grama, e recebiam pagamento por isso. Isso quase não existe mais, hoje em dia as pessoas acham que não é seguro deixar crianças fazer esse tipo de trabalho.

BBC News Brasil – Elas estão menos independentes de maneira geral?

Gray – Há 10 ou 15 anos, começamos a ver relatos de universidades sobre aumentos dramáticos nas taxas de uso de serviços de aconselhamento. Aumentou a taxa de estudantes pedindo afastamento, ou permissão para refazer um teste, ou algo do gênero porque estavam angustiados de alguma maneira, psicologicamente.

Aumentou o envolvimento dos pais, mesmo com estudantes na universidade. Entre outras atividades independentes, as crianças costumavam ser responsáveis por seu próprio trabalho escolar. Isso era uma questão entre aluno e professor, não entre professor e pais.

De certa maneira, parte da culpa é das próprias escolas, que começaram a encorajar os pais a se envolver mais na lição de casa. O primeiro passo foi que as escolas (nos Estados Unidos) começaram a exigir que os pais assinassem a lição de casa, para mostrar que estavam cientes do trabalho escolar dado a seus filhos.

Com a internet e as redes sociais, os pais começaram a se comunicar com os professores o tempo todo. Muitas vezes os pais sabem da nota que o filho recebeu em uma prova antes mesmo que a própria criança. Os pais começaram a ajudar os filhos com a lição de casa e também passaram a ser defensores da criança diante dos professores. Passaram a tentar fazer com que os professores permitissem que a criança refizesse um teste, ou que fossem mais lenientes, esse tipo de coisa.

Mesmo no ambiente escolar, os pais passaram a exercer mais e mais controle, e as crianças ficaram cada vez mais dependentes dos pais para defender seus interesses. O resultado é visto não apenas nas universidades, mas até mesmo entre empregadores de jovens adultos. É difícil acreditar, mas há até mesmo casos de pais que querem estar presente durante a entrevista de emprego de seus filhos.

E também ouvimos de empregadores que cada vez mais funcionários jovens querem que o chefe diga exatamente o que precisam fazer e de que maneira, passo a passo. Não estão acostumados a tentar descobrir como solucionar um problema sozinhos, estão acostumados a ter sempre a orientação de um adulto ou de uma figura de autoridade.

Mas estamos em uma economia que precisa mais do que nunca de pessoas que possam resolver problemas por conta própria, ser criativas, até mesmo identificar problemas que ninguém viu. Essas são as habilidades de que precisamos e, no entanto, tudo o que estamos fazendo com as crianças está acabando com essas habilidades em vez de promovê-las.

BBC News Brasil – A partir de que idade os pais devem começar a dar independência às crianças?

Gray – Realmente começa a partir dos dois anos de idade, e acelera a partir dos quatro. Aos dois, já querem fazer várias coisas sozinhos. Tudo o que são capazes de fazer, preferem fazer sozinhos. E seria bom se permitíssemos. É claro que você não vai deixar uma criança de dois anos sozinha no parque, isso seria negligente, (mas há outras coisas que podem fazer sozinhas).

Uma das minhas memórias mais antigas é que, aos quatro anos de idade, minha avó me ensinou a atravessar a rua. E ela me mandava sozinho ao mercado, a dois quarteirões de distância, para comprar algo. E isso não era incomum na época. Hoje (nos Estados Unidos), se você enviar uma criança de 10 anos de idade sozinha, alguém é capaz de chamar a polícia.

Aos cinco anos de idade, vivíamos em uma cidade pequena, e eu andava sozinho de bicicleta por toda parte. Aos 10, eu entregava jornais. Aos 13, tinha um emprego após a escola. Aos 16, fui contratado como salva-vidas.

São aumentos graduais de independência. E é isso que permite a uma pessoa adquirir o tipo de habilidades e confiança para ser capaz de enfrentar a vida sem desmoronar. E para, no fim, ser capaz de assumir responsabilidades adultas.

Não há uma idade mágica a partir da qual uma pessoa se torna independente de uma hora para outra. Precisa ser um processo gradual. Você não pode proteger completamente seu filho até os 18 anos e então mandá-lo para a faculdade e esperar que ele seja capaz de ser independente.

Crianças correndo em gramado, com mulheres no plano de fundo torcendo pelas crianças
Para Peter Gray, foco em atividades como esportes monitorados por adultos afasta crianças de brincadeiras com independência e espontaneidade

BBC News Brasil – O senhor diz que o declínio na autonomia dada às crianças ainda não é levado tão em conta quando se fala sobre as causas da crise de saúde mental. Por que essa relação não recebe mais atenção?

Gray – Acho que há dois motivos. A principal razão pela qual as pessoas não estão mais conscientes disto é que a mudança tem sido muito gradual. Foi uma mudança enorme ao longo do tempo, mas se observarmos o que mudou de um ano para o outro, ou mesmo de uma década para a outra, não parece tão grande.

Os jovens pais e mães de hoje, por exemplo, foram criados em uma época em que sua liberdade já era muito restrita se comparada a de seus avós. Então eles não percebem a magnitude das mudanças.

Outro ponto é que as mudanças ocorreram por causa de boas intenções. Pais e mães, e a sociedade em geral, passaram a acreditar que a segurança é extremamente importante para as crianças. Há muito mais ênfase em segurança hoje em dia do que no passado.

Além disso, principalmente no caso dos Estados Unidos, mudanças na sociedade, como o aumento dramático da desigualdade entre ricos e pobres e outros aspectos, deixaram pais e mães mais ansiosos em relação ao futuro dos seus filhos. Eles se convenceram de que é muito importante que seus filhos frequentem a universidade, ou podem acabar sem teto.

A ênfase em educação tornou-se extremamente forte, e é parte do motivo pelo qual os pais ficaram mais envolvidos na educação de seus filhos, e pelo qual o tempo que os alunos passam na escola aumentou. Os pais começaram a colocar seus filhos em atividades dirigidas por adultos (como esportes), que consideravam mais educacionais do que simplesmente brincar.

Criou-se a ideia de que, quando uma criança está simplesmente brincando, ela está perdendo tempo, não está fazendo nada que possa colocar em seu currículo, que possa ajudá-la (no futuro) a entrar na universidade.

Tudo isso resultou, cada vez mais, na crença de que as crianças se desenvolvem melhor quando são cuidadosamente guiadas, controladas e orientadas por adultos. E que deixá-las simplesmente ir para a rua brincar era não apenas perda de tempo, mas elas poderiam até mesmo se envolver em problemas. O que, claro, é verdade. Elas vão ter problemas. Mas esquecemos que isso faz parte de crescer: ter um problema e descobrir como resolver.

BBC News Brasil – Muitos especialistas citam a influência das redes sociais na piora da saúde mental de crianças e adolescentes. O senhor acredita que elas têm um papel importante nessa crise?

Gray – Eu passei os últimos dias imerso nessa questão (para redigir um artigo), e as pesquisas são muito claras: não há evidências convincentes de que o aumento de ansiedade, depressão e suicídio entre jovens seja resultado de um aumento do uso da internet ou de redes sociais. Há literalmente centenas de estudos que investigam correlações entre esses fatores. E todos eles, ou não mostram nenhuma correlação, ou mostram correlação muito pequena para ter significado prático.

Eu não quero negar que há problemas com o uso de redes sociais, mas também há benefícios. Em alguns experimentos, quando foi pedido aos jovens que abandonassem as redes sociais por determinado período de tempo, muitos disseram se sentir mais solitários do que antes, porque não conseguiam se conectar com seus colegas.

Na minha opinião, o argumento de que o aumento de ansiedade e depressão é resultado das redes sociais é uma distração do que considero a real causa. Além disso, as pessoas que fazem esse argumento esquecem de observar que o aumento da ansiedade e da depressão precedeu a (popularização da) internet e das redes sociais.

BBC News Brasil – O que pais e mães podem fazer para ajudar seus filhos a ser mais independentes e a ter maior bem-estar mental?

Gray – O primeiro passo é examinar suas prioridades e entender que seus filhos precisam gradualmente de mais independência. Parte do propósito do artigo que publicamos no Journal of Pediatrics é convencer os pediatras a conversar com os pais sobre a necessidade de independência.

Mas simplesmente mandar seus filhos irem para a rua não vai funcionar, por todos os motivos que discutimos. Talvez alguém chame a polícia. Talvez não haja nenhuma outra criança na rua para brincar — e, nesse caso, eles provavelmente vão preferir ficar em seus telefones.

É necessário encontrar maneiras para que seus filhos e outras crianças se reúnam sem a interferência de adultos. Uma coisa que os pais podem fazer é se reunir com outros pais no bairro e combinar de mandar todas as crianças para a rua no mesmo horário, depois da escola, talvez até sem seus telefones. E, por medida de segurança, ter um adulto presente, mas apenas um, e que não interfira, só esteja lá para caso algo realmente perigoso aconteça.

A organização Let Grow, da qual faço parte, promove um programa em que escolas oferecem um local para as crianças brincarem na rua, após as aulas. A única regra é não machucar ninguém e não destruir nada de valor. Um professor monitora, mas é instruído a intervir somente em casos realmente graves, não para apartar uma briga qualquer ou se preocupar com um joelho esfolado. Também não fica disponível para crianças que querem reclamar das outras. Porque o objetivo é deixar que elas aprendam a resolver seus próprios problemas.

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