Cavalos: as vítimas esquecidas da I Guerra Mundial
No centenário do conflito, especialistas relembram que cerca de 8 milhões de cavalos foram dizimados e explicam as consequências desse massacre para a sociedade atual
Soldados enterram os cavalos mortos em batalha na I Guerra Mundial – Hulton Archive/Getty Images
Soldados alemães ao lado de esqueletos de cavalos na I Guerra Mundial, na Polônia – GeHulton Archive/Getty Images
Cavalos são usados para transportar munição e rebocar a artilharia do exército francês, durante a I Guerra Mundial – Reprodução
Máscaras de gás para cavalos
Homem tira as rédeas de um cavalo ferido em uma batalha na I Guerra Mundial, na França
Soldados aguardando ordens durante a I Guerra Mundial
Cavalos mortos durante a I Guerra Mundial
Cavalo equipado com um metralhadora durante a I Guerra Mundial
Civis seguram pás para enterrar os cavalos mortos em batalhas da I Guerra Mundial, na Bélgica
Cavalos de soldados britânicos mortos após uma batalha na I Guerra Mundial
Máscaras de gás para cavalos – Universal History Archive
Ao fim dos quatro anos da guerra que começou em 1914, o mundo contabilizava suas vítimas: 15 milhões de mortos e mais 20 milhões de feridos. Agora, no centenário da I Guerra Mundial, os pesquisadores voltam os olhos para as vítimas esquecidas do conflito. Além da carnificina humana, as batalhas que se espalharam pela Europa dizimaram cerca de 8 milhões de cavalos, a principal força animal usada na agricultura na época. A cada dois homens atingidos por tiros, bombas e gases letais, um cavalo morreu.
Só os exércitos franceses utilizaram entre 1,5 milhão e 1,8 milhão de equinos, enquanto a Inglaterra levou para os campos de batalha outros 1,2 milhões e a Alemanha, 1 milhão. Os demais países, estimam historiadores, somavam 4 milhões de animais. Oitenta por cento dos cavalos franceses morreram em campo, 35% deles abatidos por tiros inimigos, destino parecido com os das demais tropas. A maior parte morria de fome e exaustão, sacrificada ou abandonada nas longas travessias entre os campos de batalha.
Em 1918, os poucos sobreviventes foram vendidos para os raros fazendeiros que tentavam retomar suas vidas. Os novos proprietários reclamavam que os cavalos estavam fracos, cansados, magros e pouco ajudavam nas plantações. Sem a ajuda desses bichos, a agricultura europeia recebeu um golpe fatal. Nos anos seguintes, o continente amargou uma grande fome. Na Alemanha, a falta de animais, somada ao bloqueio das nações aliadas, matou 763 000 pessoas, de acordo com estimativas oficiais. Na Rússia, cerca de 5 milhões de pessoas foram atingidas pela grande fome de 1921.
Mobilização equina – Os cavalos começaram a ser recrutados no início da guerra, junto com os soldados. Na França, uma lei de 1877 permitia que o governo tomasse os animais para servir em conflitos. Assim, em agosto de 1914, 730 000 cavalos franceses, um em cada quatro no país, marcharam para as trincheiras. A França contou ainda com 20 000 animais vindos da Argélia e mais 30 000 importados de outros lugares. “No campo, desapareceram, ao mesmo tempo, homens e cavalos”, afirma a historiadora Gene Tempest, pesquisadora da Universidade Yale, nos Estados Unidos. “Isso fez com que a agricultura ficasse paralisada em 1914: a partida dessas duas forças de trabalho foi difícil de superar.”
Gene conduziu um estudo de quatro anos sobre a presença dos cavalos nos exércitos britânicos e franceses na I Guerra Mundial. Vasculhou arquivos dos dois países e descobriu que os bichos eram muito mais numerosos nas batalhas do que se imaginava. “Devemos pensar na I Guerra Mundial como um conflito equestre. Sua força tornou possível a vida e os combates diários. Cavalos foram os principais motores da guerra”, afirma.
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No início dos combates, os equinos retirados das fazendas, indústrias e pequenos sítios eram colocados nas linhas de frente — uma herança das guerras do século 19, apoiadas em colunas poderosas de cavaleiros. Com o desenvolvimento de armamentos mais precisos, os generais perceberam que os cavalos pouco ajudavam no front. Por serem grandes demais, tornavam-se alvos fáceis para tiros e bombas.
A cavalaria seria importante até o fim do conflito em batalhas no Oriente Médio e no leste da Europa. Mas, no oeste do continente, seu papel essencial era o de meio de transporte. Noventa por cento dos animais eram usados para carregar os canhões até a linha de tiro, transportar soldados, alimentos, armas, munições e correspondências. Eles carregavam os mortos após as batalhas e serviam como veículo silencioso para espionar tropas inimigas. Registros de combates, como fotos e diários, mostram que são poucos os acampamentos sem a presença de cavalos. “É um mito imaginar que, como a cavalaria desapareceu, os cavalos também estiveram ausente das guerras. Eles permaneceram absolutamente essenciais para todas as batalhas da primeira metade do século XX”, diz Gene.
A razão da larga utilização desses animais é que eles se davam muito melhor em ambientes frios e lamacentos — como as trincheiras — do que carros e caminhões. Na década de 1910, os cavalos eram mais disponíveis e baratos do que os motores. Além disso, a maior parte dos homens que lutaram na guerra estava acostumada a conduzir cavalos, enquanto eram raros os que sabiam dirigir caminhões e tanques.
Morte no front — Estar longe das balas e minas, entretanto, não evitou o massacre dos animais. Como os soldados, eles morreram aos milhões. O serviço veterinário de guerra francês contabilizou, durante os quatro anos de guerra, 6,5 milhões de atendimentos aos cavalos — o que significa que cada um entrou nas enfermarias em torno de sete vezes. Para substituir essa força de trabalho tirada de circulação, os exércitos organizavam missões para a compra de animais ao redor do mundo. Os britânicos importaram 700 000 dos americanos e 5 000 dos uruguaios. A França comprou 500 000 dos Estados Unidos e outros 70 000 da Argentina. “No início do conflito, França e Inglaterra esperavam adquirir ainda mais dos países da América do Sul. No entanto, a biologia dos animais interveio a seu favor. Eles não suportavam muito bem a mudança de estação e a viagem era mais longa que dos Estados Unidos para a Europa”, explica Gene.
A França gastou 139 milhões de dólares no comércio equino com os Estados Unidos, enquanto os ingleses pagaram 337,5 milhões de dólares. Comparado ao preço dos animais europeus, os americanos eram bem mais baratos. “Era politicamente menos custoso comprar animais de fora do que pedir à população europeia que sacrificasse os seus”, diz a historiadora.
O número poderia ter sido maior, se os cavalos importados não fossem, em sua maioria, considerados selvagens pelos europeus. Relatos de soldados franceses mostram que era preciso domar os animais e ensiná-los a enfrentar os horrores da guerra antes que eles pudessem ser usados.
Além do número de bichos que diminuía, as tropas precisaram lidar ainda com outro problema: a alimentação. Em 1917, eram necessárias 3 750 toneladas de aveia diárias para suprir as necessidades dos animais. Desse total, 70% vinham dos Estados Unidos, que diminuíram as exportações devido ao alto preço do frete. Ver os cavalos famintos, sem forças para os combates e, muitas vezes, morrendo de inanição, significava um forte abalo emocional para os soldados. Para alguns, a perda dos animais inocentes era um trauma a mais, somado à morte inútil de milhões de companheiros entre balas, minas e o arame farpado que cobria as trincheiras.
Fonte: Veja