Em decisão “histórica”, Justiça libera aborto legal para grávida de feto sem chance de vida

Desembargador reforça Estado laico e saúde mental da mulher em seu voto, que foi seguido por unanimidade

Aborto legal
Aborto legal  – Foto: Freepik/Reprodução
A Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça da Bahia reverteu, por unanimidade, decisão anterior e autorizou a interrupção da gravidez de uma mulher cujo feto, com graves más-formações, não tem chances de sobreviver após o nascimento.

A mulher havia procurado o Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (Nudem) da Defensoria Pública da Bahia.

Com laudo elaborado a partir de exames de ultrassonografia e assinado por dois médicos especialistas, o órgão acionou a Justiça para solicitar a interrupção de gravidez.

No entanto, apesar de mais de uma série de exames e análises médicas, houve parecer contrário do Ministério Público da Bahia e a juíza negou o pedido, alegando que não há “identificação de risco concreto à vida da gestante, se levada a gestação a termo”, de acordo com o processo.

A Defensoria Pública, então, recorreu da decisão.

O feto foi, logo no início da gravidez, diagnosticado com um defeito no sistema urinário. Com o passar das semanas, o quadro se agravou porque não havia líquido amniótico e, com isso, os pulmões não se desenvolveram. Diferentemente de um bebê prematuro, os pulmões do feto não são capazes de fazer trocas gasosas e não têm como se desenvolver com o tempo, sendo que a sobrevida no mundo exterior provavelmente não passaria de minutos. Além disso, com a ausência do líquido amniótico, o sistema digestório também não se desenvolve.

Para a coordenadora do Nudem da Bahia, Lívia Almeida, a decisão veio “atrasada”, mas é “histórica”:

“Essa decisão pode ter vindo atrasada para a nossa assistida, porque ela teve que enfrentar um processo muito doloroso antes dela. Foram muitos dias esperando. Dias que significaram angústia, medo, dor, ansiedade e tristeza “, afirma Almeida.

“Mas a decisão é histórica, muito bem fundamentada, abordou vários pontos importantíssimos para nós, como Estado Laico e direito à saúde mental também. Não é justo submeter uma mulher a algo tão cruel como gestar e parir um filho para depois enterrá-lo. Espero que ela pavimente um caminho menos doloroso para as próximas que vierem.”

O desembargador Geder Luiz Rocha Gomes deu seu voto, que foi seguido pelos demais de forma unânime.

“Temos que partir da premissa óbvia, mas sempre digna de nota, porque muitas vezes esquecida, é que a República Federativa do Brasil é um Estado laico, de forma que conjecturas que residem puramente no âmbito da moral religiosa não podem servir como fundamento para análise judicial”, diz o desembargador.

“Vê-se, assim, que uma gestação comum já traz, em si, riscos atinentes ao estado gravídico. Não se poderia esperar algo diferente, posto que o corpo da mulher se transforma como um todo para gerir e nutrir o feto e, depois, prepara-se para o momento do parto. São alterações de ordem física, hormonal e psicológica. Nesse ponto, merece especial atenção o fator psicológico que, embora muitas vezes esquecido, é sobremaneira relevante para a gestante durante e após a gravidez (…) Pode-se afirmar que é imensurável o impacto causado pela descoberta de uma gravidez de feto com malformação que torna impossível a vida fora do ventre de quem o gera”, completa o desembargador.

Gomes cita Talvane Marins de Moraes, representante da Associação Brasileira de Psiquiatria, que havia destacado “que impedir que a gestante possa dar fim ao sofrimento que a inflinge, pode desembocar no desenvolvimento de ‘um quadro psiquiátrico grave de depressão, de transtorno, de estresse póstraumático e até mesmo um quadro grave de tentativa de suicídio, já que não lhe permitem uma decisão, ela pode chegar à conclusão, na depressão, de autoextermínio’”.

O caso da baiana, uma mulher negra, sem muitos recursos e com baixa escolaridade, mostra como existe um vácuo jurídico no acesso a esse direito no Brasil.

Em 2012, o STF decidiu que uma gestante pode interromper a gravidez se for constatada anencefalia (uma má-formação caracterizada pela ausência total ou parcial do cérebro) no feto através de um laudo médico. Assim, esse se tornou um dos poucos casos em que o aborto é legal no Brasil, juntamente com a gestação decorrente de estupro ou quando há risco de morte da mulher.

Porém, da mesma forma, existem outras síndromes e más-formações que fazem com que o feto não consiga sobreviver fora da barriga da mãe. Segundo os médicos, é considerado incompatível com a vida o feto que terá 90% ou mais de chance de morte antes do primeiro ano de vida. Em todos esses casos é preciso recorrer à Justiça para que ela autorize a interrupção da gestação de forma legal por analogia à decisão da anencefalia.

Lacuna na legislação

“Tem sido feito por analogia, mas caso a caso. Então, às vezes a gente se depara com essas decisões injustas por fazerem uma interpretação muito restritiva. Não se justifica que uma mulher seja forçada a levar uma gravidez de um feto inviável. É uma lacuna na nossa legislação porque não inclui explicitamente uma previsão legal para esses casos. Cada juiz vai montar a decisão de acordo com a sua visão e as mulheres acabam nessa situação em que há uma loteria “, afirma a advogada Beatriz Galli integrante do Comitê Latino-americano e do Caribe pelos Direitos da Mulher (Cladem Brasil).

Cerca de 5% dos abortos realizados de forma legal no Brasil são feitos por anencefalia ou por más-formações (autorizadas pela Justiça).

A ginecologista, obstetra e professora Helena Paro, do Núcleo de Atenção Integral às Vítimas de Agressão Sexual, na Universidade Federal de Uberlândia, defende que o STF explicite que o que quer dizer com anencefalia seja incompatibilidade com a vida.

Assim, da mesma forma que acontece nesses casos, não haveria necessidade de judicialização. Valeria a mesma regra: a partir da elaboração de dois laudos, assinados por dois médicos, a mulher poderia interromper a gravidez, abreviar seu sofrimento e evitar que o bebê sofra também pela falta de condições de vida e intervenções médicas.

“Há más-formações que podem até ser compatíveis com a vida, mas trazem maior risco inclusive à vida da mulher, como de pré-eclâmpsia e tromboembolismo, entre outros. E também não é só a saúde física. Está em jogo também a saúde mental e social delas. Você ter uma gravidez, todo mundo te ver grávida e você ter que ficar explicando para todo mundo “, afirma Paro.

“Tem um monte de outras coisas que o sistema judiciário deve tomar conta, mas o aborto não é uma delas porque é uma questão de saúde.

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