A prosperidade mora ao lado

Por Marcelo Tognozzi*

Em novembro de 1975, quando o ditador espanhol Francisco Franco dava seu último suspiro, o rei Hassan 2º do Marrocos tomava fôlego para liderar a Marcha Verde, movimento que reuniu 350 mil marroquinos rumo ao Saara Ocidental.

Ao liderar a marcha, Hassan 2º realizou o sonho do seu pai, o rei Mohamed 5º, de unificar o Marrocos. Mohamed negociou a Independência em 1956, conseguiu que os franceses deixassem o território, mas não obteve êxito em relação às terras colonizadas pelos espanhóis.

Ali, onde o mar abraça o deserto, os espanhóis fundaram em 1884 a Vila Cisneros, homenagem ao cardeal comandante dos exércitos dos reis católicos na retomada da Andaluzia, antes ocupada pelos árabes, boa parte deles de origem marroquina. Basta uma simples consulta ao Google e as fotos da Marcha Verde dão uma noção do tamanho deste movimento pacífico.

Passados 49 anos, o governo marroquino operou profundas transformações na região, que segue sendo alvo de disputas. O Saara Ocidental é reivindicado por um movimento guerrilheiro chamado Frente Popular de Libertação de Saguia El Hamra e Rio do Ouro, ou simplesmente Frente Polisario. A frente foi criada em 1973 por El-Ouali Mustafa Sayed.

Nascido no deserto de família nômade, seu pai era pastor de cabras e ele foi para a escola aos 13 anos, graças a uma bolsa do governo marroquino. Chegou à universidade,  formou-se em direito e decidiu pegar em armas para criar um governo autônomo na região.  Morreu aos 27 anos durante uma batalha contra tropas da Mauritânia depois de uma tentativa frustrada de explodir o sistema de abastecimento de água da capital Nouakchott. Até hoje, ninguém sabe onde seu corpo está enterrado e Sayed virou uma espécie de Che Guevara do Saara.

A Polisario segue com mais de 50 anos de vida, apoiada pelo governo da Argélia, país aliado do Irã simpático ao Hamas e ao Hezbollah, ambos em guerra contra Israel. Uma comunidade com cerca de 150 mil sarauís vive na Argélia em acampamentos em Tindouf e hoje, de acordo com a ONU, suas condições são precárias e sofrem com a falta de alimentos.

Um relatório da Human Rights Watch, de 2014, mencionou situações  de escravidão entre os sarauís e pediu providências. A Polisario tem protagonizado conflitos sangrentos com o Marrocos, como o que ocorreu em novembro de 2023, matando civis e causando protestos.

Existe o braço armado do movimento, a Polisario, e a Rasd (República Árabe Sarauí Democrática), o braço diplomático. É fato que a Polisario, liderada por Brahim Ghali, tem levado a melhor até aqui na guerra da comunicação, disseminando uma narrativa muito semelhante àquela do Hamas contra Israel. Uma narrativa que, como todas as focadas na desconstrução do adversário, acaba atropelando a verdade dos fatos. Numa época em que as pessoas são seduzidas pela instantaneidade das redes sociais, o efeito é imediato, mas nem sempre duradouro.

No livro, “O Saara Marroquino” do advogado francês Hubert Seillan, há um bom registro histórico sobre esta disputa. Sellan mostra com fatos e argumentos jurídicos que a Polisario construiu uma narrativa, conseguiu o apoio de boa parte da esquerda mundial e carimbou a pecha de colonialista no Marrocos. O argumento não para de pé, já que o próprio Marrocos passou dezenas de anos sob domínio colonial francês e espanhol. Até hoje, as cidades de Ceuta e Melilla, no Mediterrâneo, são possessões espanholas.

Há um imenso contraste entre a população marroquina, de um lado da fronteira, e a sarauí, do lado argelino. Na parte administrada pelo Reino do Marrocos, a prosperidade é evidente. Na terça-feira (10), uma mulher vestida à moda muçulmana caminhou até uma pilha de blocos de concreto. Com um celular nas mãos, conectada a uma rede social, estava conversando em árabe enquanto esperava o ônibus que a levaria até Dakhla.

A figura da mulher sintetiza a combinação entre a tradição e a inovação. Do outro lado da fronteira, morando em barracas, os sarauís vivem como há 50 anos. Pouca coisa mudou.

A mulher do celular trabalha no canteiro de obras do porto Dakhla Atlântico junto com outros 1.700 trabalhadores. Ali, estão operários, engenheiros, arquitetos, médicos, profissionais de todo tipo dedicados a erguer uma obra de 1,2 bilhão de euros. São muitas as mulheres empregadas, inclusive engenheiras como Nisrine Iouzzi, diretora de Construção.

Ali, são produzidos blocos de concreto e pilares usados na construção do porto. O Sol fornece 60% da energia consumida pela obra. O porto, na visão de Iouzzi, conectará o comércio mundial com a África Ocidental, do Oriente Médio a Europa, as Américas e as Ilhas Canárias. Ao todo são 1.650 hectares.

Em 2028, quando o porto estiver funcionando com seus terminais pesqueiro e de carga geral, serão movimentadas 35 milhões de toneladas anuais. As mercadorias transitarão por uma ponte de 7 km, que conectará os terminais de carga à rodovia. É uma posição geográfica chave tanto para os países mais ao sul quanto para as Ilhas Canárias. Não é por acaso que entre os grandes investidores do projeto estão os Emirados Árabes.

A aposta do Marrocos em infraestrutura tem criado resultados positivos. O País vem rapidamente se transformando no maior polo portuário da África. Além do porto de Dakhla em construção, tem os portos de Casablanca e Tânger no Mediterrâneo. Ao lado de Tânger Med está prevista a construção de um novo porto, o Med 2. Os portos marroquinos têm grande potencial de competitividade, porque reduzem em muito o tempo de transporte de cargas. Do Brasil até Tânger, por exemplo, a viagem é encurtada em 6 dias em relação a Roterdã na Holanda.

Marrocos é um país em desenvolvimento, tem 38 milhões de habitantes, renda per capita de US$ 8.800 anuais e PIB de US$ 337,48 bilhões em 2023. O governo investe em educação e inovação, fazendo com que todos os projetos de infraestrutura sejam complementados com escolas de formação de mão-de-obra.

O resultado é um grande canteiro de obras. Há previsão de ampliar a linha do trem-bala, que hoje liga Casablanca e Tânger, indo até Marraquexe e Agadir. A ideia é concluir estes trechos até a Copa de 2030, que terá como sede Portugal, Espanha e Marrocos.

Claro que ainda há muito o que fazer, especialmente em relação à melhoria da qualidade de vida e erradicação da pobreza, que é visível na periferia de Casablanca, uma cidade do tamanho do Rio com quase 5 milhões de habitantes, e também no interior. Ainda há um percentual de cerca de 20% a 25% de analfabetos. Mas as mulheres estão conquistando espaços importantes. Elas ocupam 5 ministérios, dentre eles o da Economia e Finanças dirigido por Nadia Fettah.

Na fábrica da Renault, em Casablanca, 12% dos empregados são mulheres. Latifa Rabi é formada em biotecnologia e chefia a seção de pintura da fábrica. Simpática, ela segue a tradição muçulmana de usar o hijab e explica como é feita cada fase da pintura dos modelos Logan, Sandero e Express produzidos naquele chão de fábrica.

Muito jovem, Latifa ainda não casou. Diz que preferiu focar no trabalho, agarrar a oportunidade de ser a primeira mulher a chefiar uma seção da linha de montagem da indústria que produziu 382 mil carros em 2022. Destes, 90% foram exportados para 68 países, movimentando 5,7 bilhões de euros ou 3% do PIB marroquino.

No deserto do Saara, na parte mais próxima do mar, a pouca umidade faz nascer um pequenino arbusto muito resistente chamado larad, cujas raízes se agarram na terra com uma força impressionante.

Quem vê a transformação do deserto em civilização, inevitavelmente acaba comparando a teimosia do larad, resistente a tudo e todos, com a obsessão pela prosperidade daqueles que marcharam para Dakhla. Nós, brasileiros, conhecemos muito bem esta energia. É a mesma que Juscelino Kubitschek moveu rumo ao Centro-Oeste para construir Brasília.

*Jornalista

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