Estou mergulhado na biografia de Clarice Lispector, encantado com sua paixão pelo Recife, mesmo nascido em aldeia ucraniana. Como ela escrevia bem. Deixou frases maravilhosas em seus escritos. Falou de tudo. Da vida, da solidão, de amores, de desilusões, do cotidiano.
Como era humilde! “Minhas desequilibradas palavras são o luxo do meu silêncio”, sentenciou. Falou, principalmente, do Recife, de Pernambuco. “Pernambuco marca tanto a gente que basta dizer que nada, mas nada mesmo nas viagens que fiz por este mundo contribuiu para o que escrevo. Mas Recife continua firme”, escreveu Clarice em A descoberta do Mundo, em trecho destacado por Benjamin Moser na biografia Clarice.
Clarice também tinha seus medos. “O medo sempre me guiou para o que eu quero; e, porque eu quero, temo”. A solidão a perseguia. “Sim, minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas, nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite”, escreveu.
Pertencer, para era, era sinônimo de viver. “A vida é para quem é corajoso o suficiente para se arriscar e humilde o bastante para aprender”, nos ensinou. Muitas cidades passaram pela vida de Clarice Lispector, da Ucrânia, onde nasceu, até o ensolarado Rio de Janeiro, passando por Nápoles, Berna e Washington.
Entre todos os lugares onde a escritora viveu, o Recife guarda as memórias fundamentais para a formação da sua identidade. A infância e o início da adolescência desta filha caçula de imigrantes ucranianos ocorreu principalmente pelo bairro da Boa Vista, na Rua da Aurora e pelo Cais.
O Recife de Clarice é o centro da efervescência intelectual e cultural do modernismo pernambucano. Perto dali se encontrava a Confeitaria Glória, palco do assassinato de João Pessoa, em 1930. No mesmo ano deste trágico acontecimento que mudaria os rumos da política nacional com a ascensão de Getúlio Vargas – e na mesma vizinhança -, era inaugurada por Jacob Berenstein a primeira Livraria Imperatriz.
Também nos arredores ficava o Colégio Hebreu-Iídiche Brasileiro, onde Clarice estudou até entrar no Ginásio Pernambucano, localizado não muito longe, em 1932. Embora o reconhecimento oficial como cidadã pernambucana só tenha vindo em novembro de 2020, mais de quatro décadas após sua morte, Clarice já se declarava como recifense há muito mais tempo.
Foi com essa naturalidade que a autora foi matriculada, ainda adolescente, em um colégio carioca, logo após a mudança da família para a capital fluminense. Clarice tinha apenas cinco anos de idade quando chegou ao Recife, acompanhada por pai, mãe e duas irmãs mais velhas. Só deixou a cidade aos 15, já com o prazer pelas letras e o fascínio por contar histórias incutido em sua mente.
Ao mesmo tempo em que Clarice aprendia a ler, já sentia a necessidade de escrever. Foi vivendo no Recife que a pequena Clarice ensaiou seus primeiros escritos. Ao Diario de Pernambuco, chegou a enviar alguns textos para o suplemento infantil que o jornal mantinha na época, mas nunca foram publicados. Por volta dos 9 anos, após assistir a um espetáculo no Teatro de Santa Isabel, escreveu uma peça intitulada “Pobre menina rica”, que escondeu atrás de um móvel da casa.
Todo esse material se perdeu com o tempo, mas há comprovação de sua existência em entrevistas concedidas pela autora. Enquanto viveu na capital pernambucana, Clarice ocupou com a família, pelo menos, três endereços distintos, todos no bairro da Boa Vista, na região central da cidade. O primeiro e mais conhecido fica junto à Praça Maciel Pinheiro, onde há uma estátua erguida em sua homenagem.
Na Rua da Imperatriz, ela morou em mais de uma casa. Em uma delas foi vizinha da Livraria Imperatriz, que funciona até hoje no mesmo local.
A menina rica que não se recusa a emprestar um livro à protagonista do conto “Felicidade Clandestina” foi inspirada em uma das filhas de Jacob Berenstein, fundador da loja.
O bairro da Boa Vista foi muito ocupado pelos judeus que começaram a vir para o Recife no início do século 20. Os imóveis eram mais baratos, havia transporte com mais facilidade e era perto do comércio. Tudo isso favorecia que eles se estabelecessem por ali, já que a maioria não tinha recursos e trabalhava como comerciante.
O próprio pai de Clarice era mascate. A primeira escola onde Clarice foi matriculada no Recife foi o João Barbalho, em Santo Amaro. Embora nenhum registro da presença da escritora na instituição tenha sido encontrado por pesquisadores, ela própria cita o colégio na crônica “As grandes punições”, assim como sua convivência com o colega de turma Leopoldo Nachbin, que viria a ser uma referência da matemática no Brasil.
Depois, a aluna passou a estudar no Colégio Hebreu Ídiche Brasileiro, que hoje funciona com o nome de Colégio Israelita Moysés Chvarts, na Torre. Já em 1932, começou a frequentar o Ginásio Pernambucano.
As vivências em território pernambucano estiveram presentes não só na memória da escritora, mas também em suas obras.
Entre 1967 e 1973, passou a escrever semanalmente crônicas para o Jornal do Brasil, retratando as lembranças da infância. “Ela cita a palavra Recife em nove dessas obras. Ao ler essas crônicas, a gente vê nitidamente o que ela viveu por aqui voltando aos poucos.
Em “O passeio da família”, por exemplo, Clarice narra um passeio em família na região portuária. “Restos de Carnaval” mostra a menina a observar a efervescência dos dias de folia nas ruas da cidade, enquanto em casa só se agravava o estado de saúde de sua mãe, que viria a morrer em 1930, sendo sepultada no Cemitério dos Israelitas do Barro.
Já em “Banhos de mar”, ela relembra das idas com o pai até Olinda, onde o cheiro de mar a invadia e embriagava. Depois de adulta, a escritora chegou a visitar Pernambuco outras duas vezes. A primeira, na companhia do ex-marido e do primeiro filho, veio visitar parentes que por aqui ficaram na Avenida Conde da Boa Vista, onde também chegou a residir.
Com uma despedida em grande estilo, a autora fez sua última viagem ao Recife em 1976, ano anterior a sua morte. Na ocasião, apresentou uma conferência no auditório do Banco do Estado de Pernambuco (Bandepe).
Clarice Lispector foi uma exímia frasista. Construiu máximas curtas sobre a subjetividade humana numa quantidade quase sem paralelos na literatura brasileira —algo que ajudou a disseminar sua obra, mas colaborou também para que alguns críticos torcessem o nariz para ela.
Em Perto do coração selvagem, escreveu: “Continuo sempre me inaugurando, abrindo e fechando círculos de vida, jogando-os de lado, murchos, cheios de passado.” Em A hora da estrela, cravou: “Escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida.”
Por fim, em Água viva deixou essa frase marcante: “A loucura é vizinha da mais cruel sensatez.”