Golpe de 64: saiba como o Ipês desestabilizava o governo Jango

Financiado por grandes empresários brasileiros, o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais fez lobby no Congresso para cooptar parlamentares e barrar projetos do governo, deixando João Goulart isolado
Felipe Amorim e Rodolfo Machado
 


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Conhecido por influenciar a opinião pública brasileira antes do golpe de 1964, o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, ou Ipês, fundado em 1961 por altos empresários brasileiros, fez muito mais do que imprimir panfletos, editar livros e veicular propaganda para desestabilizar o governo de esquerda do presidente João Goulart. A ação foi bem mais direta do que se pode imaginar: entre 1961 e 1964, período de alta instabilidade política no Brasil, o Ipês atuou energicamente em Brasília, dentro do Congresso Nacional. Trabalhava como emissário ipesiano um poderoso banqueiro carioca responsável por operacionalizar no coração do Poder Legislativo o pesado lobby do instituto, cujo financiamento era sustentado por doações de grandes empresas brasileiras e multinacionais aqui instaladas. Sua função era clara: coordenar uma rede suprapartidária de parlamentares arregimentados pelo Ipês para barrar os projetos do governo no Congresso. Dessa forma, Jango se veria cada vez mais isolado na cena política nacional, criando um clima de instabilidade que o levaria a radicalizar o discurso e a ação.

O braço do Ipês no Congresso Nacional se chamava GAP (Grupo de Assessoria Parlamentar). Conforme identificam historiadores que se debruçaram sobre o período, com especial atenção para o caráter civil-empresarial do movimento golpista, o GAP — ou “Escritório de Brasília”, como a diretoria ipesiana, preocupada com a discrição, recomendava que fosse chamado — desempenhava a coordenação política da campanha anti-Jango. Sua liderança era exercida por meio da ADP (Ação Democrática Parlamentar), uma frente suprapartidária constituída basicamente de deputados da UDN (União Democrática Nacional), de direita, e do PSD (Partido Social Democrático), de centro-direita. A atuação dessas instituições, capitaneadas pelo Ipês, foi marcante no Congresso Nacional. O próprio líder ipesiano do Escritório de Brasília reconhecia que a ADP “era o braço principal” do Ipês, responsável por fazer “bastante lobby” entre os parlamentares.

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CPDOC/FGV

Objetivo do Ipês no Congresso era barrar projetos do governo e deixar João Goulart (foto) cada vez mais isolado

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O historiador da Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos) Hernán Ramiro Ramírez classifica como “vital” a atuação ipesiana do GAP na desestabilização do governo Jango. Em sua tese de doutorado (“Os institutos econômicos de organizações empresariais e sua relação com o Estado em perspectiva comparada: Argentina e Brasil, 1961-1966”), Ramírez analisa com profundidade a atuação do Ipês no Brasil. Outro que vê no GAP papel relevante no processo de deposição de Goulart é o historiador e cientista político uruguaio René Armand Dreifuss. Em seu livro 1964: A conquista do Estado, atesta:

O Ipês, através da ADP, forçava a um “beco sem saída parlamentar”, bem como a um “ponto morto” executivo, que só poderia ser solucionado pelo poder “moderador” das intensamente aliciadas Forças Armadas.

Leia abaixo mais sobre esta atuação extraoficial do Ipês — Instituto fundado, no papel, para defender a “democracia”, a livre iniciativa e a economia de mercado. Saiba quais foram suas principais estratégias, os nomes de maior relevância e como efetivamente se deu a prática do Escritório de Brasília ipesiano nos corredores do Poder Legislativo:

1.) COMO FUNCIONAVA

A ideia, conforme explica Miguel Lins, líder ipesiano citado por Dreifuss, era “aconselhar o Congresso, estar dentro dele, ter um homem do Ipês dentro dele”. Enquanto os outros grupos especializados do Ipês discutiam a conjuntura política do Brasil, unindo figuras militares e empresariais, o GAP utilizava toda essa gama de informações produzidas e coletadas para antecipar manobras no Legislativo e fazer prevalecer os interesses do Ipês. Assim, por meio da ADP — que tinha pouco mais de 150 dos 409 deputados da Câmara em outubro de 1961 —, o Escritório de Brasília conseguia alterar projetos enviados ao Congresso pelo Executivo e fazer aprovar os que o Instituto patrocinava. Faziam parte da estrutura do GAP um escritório político e assessores formais. Seus recursos vinham tanto da sede do Instituto no Rio de Janeiro quanto da de São Paulo.

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Arquivo da Câmara dos Deputados

“Ter um homem do Ipês dentro do Congresso”: munido de informações, Instituto fazia prevalecer seus interesses no Legislativo

2) ELES SABIAM QUE ERA ILÍCITO?

O historiador Hernán Ramírez afirma, em sua tese, que não faltam documentos indicando as inúmeras tentativas de manter essas incursões do Ipês na cena política “no maior sigilo possível”. Por esse motivo — discrição —, uma carta da diretoria do Ipês de dezembro de 1962 ditava a seus membros as diretrizes: “Toda menção ao GAP deve ser suprimida. Talvez deva-se falar em termos de Escritório de Brasília, sem mais explicações”.

Este cuidado por parte do Ipês indica que suas lideranças estavam cientes de que essa relação direta do Instituto com a classe política era, no mínimo, mal vista — para não dizer ilegal. Não se sabe ao certo de que maneira o Ipês, por meio do GAP, assegurava a lealdade dos parlamentares arregimentados pela ADP, mas Ramírez escreve que o Instituto “patrocinava e até certo ponto controlava” os deputados da ADP.

3.) QUEM ATUAVA

O homem forte do Ipês em Brasília era o banqueiro Jorge Oscar de Mello Flores. Além de ipesiano graúdo e diretor da Sul-América Seguros, o banqueiro do Chase Manhattan Bank foi nome de relevância no setor de seguros privados do Brasil. Ajudou a fundar na década de 1940 a FGV (Fundação Getúlio Vargas) e, mais tarde, a Consultec (Companhia Sul-Americana de Administração e Estudos Técnicos), firma idealizada por Roberto Campos que emitia pareceres sobre solicitações de empréstimos de empresas estrangeiras perante o BNDE. No GAP, Mello Flores era assessorado pelo escritor Rubem Fonseca. Como o próprio Mello Flores relata, seus principais contatos no parlamento eram os deputados João Mendes (UDN-BA), presidente da ADP; Herbert Levy (UDN-SP), presidente da UDN; Amaral Peixoto (PSD-RJ) e Antônio Carlos Magalhães (UDN-BA), um “baiano que ajudava muito”, nas palavras dele.

Também em Brasília, quem atuava em função semelhante — porém mais aberta — no Legislativo era o integralista Ivan Hasslocher, que chefiava o Ibad (Instituto Brasileiro de Ação Democrática). Hasslocher manejou vultosos fundos na campanha eleitoral de 1962, promovendo os candidatos da ala conservadora junto a rádios, jornais, revistas e emissoras de TV por todo o país. A relação entre Ipês e Ibad era bem próxima; as instituições compartilhavam ideais, objetivos e métodos de ação. O pleito de 1962 foi o momento de convívio mais intenso entre os institutos; o Ibad, porém, teve atuação mais descarada do que o Ipês, cuja diretoria era bem mais preocupada com a discrição das ações.

CPDOC/FGV

O homem do Ipês no Congresso era o banqueiro Jorge Oscar de Mello Flores II (esq.), chefe do “Escritório de Brasília”

4.) EM TERMOS PRÁTICOS, O QUE FIZERAM?

Toda a pressão e os esforços ipesianos no Congresso Nacional tiveram alguns resultados concretos — seriam os chamados “atos de ofícios”? — impactando no cenário político pré-64.

Veto a San Tiago Dantas
No dia 28 de junho de 1962, 174 deputados federais votaram para barrar a nomeação do então chanceler San Tiago Dantas ao cargo de primeiro-ministro, após a saída do pessedista Tancredo Neves. Desde a renúncia do presidente Jânio Quadros, em agosto do ano anterior, as forças políticas legalistas costuraram um acordo instituindo o parlamentarismo no Brasil, o que diminuía os poderes da presidência, mas assegurava a posse do vice, João Goulart. Quando Tancredo Neves renunciou, em maio de 1962, San Tiago Dantas era o nome natural à sucessão.

A partir daí, conforme relata Hernán Ramírez, o ipesiano Jorge Oscar de Mello Flores deu início a uma forte campanha no Congresso contra o líder do PTB. Acontece que Dantas representava a ala mais moderada dentro da legenda trabalhista — opondo-se à ala esquerdista capitaneada por Leonel Brizola. Dessa maneira, San Tiago Dantas era um nome bem recebido tanto pela centro-esquerda, quando por certa parcela do empresariado. Como escreveu o historiador Ramírez:

Esse político representava a última possibilidade de formação de um governo consensual liderado pela burguesia e sua rejeição representou, de fato, a rejeição pelas classes dominantes de uma composição com o trabalhismo.

É importante notar, contudo, que os esforços do Ipês não foram a única causa da derrota de San Tiago. O próprio Jango não esteve lá muito empenhado na campanha de seu correligionário. O que ele queria era a antecipação do plebiscito que restituísse seus plenos poderes presidenciais, acabando com o parlamentarismo — o que de fato aconteceria em janeiro de 1963.

Reformas de Base
As chamadas “Reformas de Base” eram a principal bandeira política de João Goulart. Sob esse guarda-chuva estavam profundas mudanças nos sistemas bancário, fiscal, urbano, administrativo, agrário e universitário; todas com o objetivo de produzir avanços sociais e reduzir a desigualdade no país. O Ipês, representante das forças conservadoras, era firmemente contrário a essas mudanças, dando início a uma forte campanha para frear o avanço da proposta janguista.

Se João Goulart tinha um plano de governo, o Ipês também possuía o seu próprio. E fez de tudo para impô-lo sobre o governo: o Instituto dividiu-se em comissões, setorizou as áreas temáticas, realizou grandes seminários, encomendou estudos e publicou incontáveis artigos em jornais para mobilizar a opinião pública. E também contra-atacou com o Escritório de Brasília: “por volta de março de 1963, o Ipês havia submetido à análise do Congresso 24 projetos de lei” sobre o tema, conforme escreve Hernán Ramírez.

Na ocasião, uma carta (disponível no livro de Dreifuss) do chefe do GAP, Jorge Oscar de Mello Flores, ao líder ipesiano Glycon de Paiva evidencia os esforços do grupo no Legislativo:

Se for reforçada a organização em Brasília, poderei ativar a elaboração dos projetos de lei consubstanciando as reformas de base. (…) As vantagens [de agir assim] são: fazer passar à defensiva os esquerdistas, petebistas e demagogos, reduzindo suas possibilidades de engendrarem e apresentarem projetos contra o País.

Eleições de outubro de 1962
Em outubro de 1962, foram realizadas no Brasil as últimas eleições democráticas antes do golpe que instaurou a ditadura civil-militar. O pleito pôs em jogo no país a totalidade das 409 cadeiras da Câmara dos Deputados, e mais dois terços do Senado Federal, 11 governos e inúmeros deputados estaduais, prefeitos e vereadores. Conforme aponta Hernán Ramírez, a rede composta por Ipês/Ibad apoiou 250 candidatos a deputado federal, 600 parlamentares estaduais e oito concorrentes a governos estaduais (sobretudo em Pernambuco, onde era grande o empenho para derrotar Miguel Arraes). Como aponta Hernán Ramírez:

Em troca de favores, os candidatos eram declaradamente compelidos a assinar um compromisso ideológico através do qual eles prometiam sua lealdade ao Ibad acima da lealdade a seu partido e que os comprometia a lutar contra o comunismo e defender o investimento estrangeiro; assim como ligar-se à ADP.

A ação mais ostensiva de campanha política era feita por Ivan Hasslocher no Ibad, utilizando-se de altas somas de dinheiro vindo de doações empresariais e estrangeiras, como o próprio embaixador norte-americano Lincoln Gordon confirmaria posteriormente, em entrevista de 1977 à revista Veja: “Havia um teto por candidato. O dinheiro era para comprar tempo no rádio, imprimir cartazes. E você pode estar certo de que eram recebidos muito mais pedidos do que podíamos atender”.

Embora tenha negado em depoimento concedido ao CPDOC/FGV na década de 1990, Jorge Oscar de Mello Flores foi incumbido pelo Ipês de atuar nas eleições. Em atas de reuniões do instituto, o banqueiro aparece compartilhando com colegas ipesianos seu temor pela sua exposição pública. Ele acreditava que talvez tivesse que se desligar do Ipês para preservar sua discrição, razão pela qual disse que precisava de uma sala para atuar fora do espaço físico do Congresso Nacional.

CPDOC/FGV

Jango, no centro, cercado de correligionários do PTB: eleições de 1962 aumentou presença do partido na Câmara

Ponderando as candidaturas das diversas regiões do país no pleito de outubro de 1962, Mello Flores fixou como uma “média sensata” a quantia de 15 milhões de cruzeiros “per capita” (mais de R$ 50 mil, em valores atualizados).

Embora não tivessem sido poucos os esforços de toda a rede empresarial do Ipês/Ibad para financiar as campanhas, o resultado do pleito de outubro ficou bem abaixo do esperado — o que teria, segundo Ramírez, aproximado as forças conservadoras das alternativas políticas mais “antidemocráticas”, dando início à conspiração. Conforme aponta a pesquisadora Dulce Pandolfi, em breve artigo para o site do CPDOC/FGV, o pleito de 1962 modificaria profundamente a correlação de forças no Congresso:

O PSD manteve a sua tradicional posição de maior partido, porém o PTB, o partido do presidente, foi o mais votado e passou a ocupar o segundo lugar, suplantando a UDN. Se antes havia uma polarização entre o PSD e a UDN, depois de 1962 ocorreu uma redefinição das alianças e uma maior fragmentação do sistema partidário. Para barrar as reformas, sobretudo a agrária, setores importantes do PSD, por exemplo, alinharam-se à UDN.

Conforme explica Ramírez, a quantia gasta por essa rede civil-empresarial foi tamanha — cifra que, para ele, pode ter beirado os US$ 20 milhões — que “levantou suspeita geral quanto à nacionalidade e aos objetivos políticos dessas contribuições”. No ano seguinte, seria criada no Congresso uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) para investigar as origens desse montante de doações insuspeitas.

Reprodução/Livro Sigla da corrupção, de Eloy Dutra (1963)

Na contracapa do livro de Eloy Dutra sobre o Ibad, uma foto de Hasslocher com a legenda: “Guardem bem esta cara. Manipula bilhões
para corromper o processo democrático e transformar o Brasil num quintal dos seus misteriosos patrões.”

5.) AS AUTORIDADES NÃO DETECTARAM AS ATIVIDADES?

A partir do momento em que parte do Congresso começou a se movimentar para instaurar a CPI e investigar as doações da campanha eleitoral, foram feitas inúmeras reuniões de emergência na cúpula do complexo Ipês-Ibad com o objetivo de coordenar a estratégia jurídica de defesa dos envolvidos. Ao final da CPI, apenas o Ibad seria considerado culpado de corrupção política; seu advogado, Dario de Almeida Magalhães, era integrante do Ipês.

Em setembro de 1963, resultado das investigações parlamentares, o governo de Goulart determinaria a dissolução do Ibad, comprovando seu envolvimento ilegal nas eleições da Câmara. O líder do Ibad, Ivan Hasslocher, deixou o Brasil e passou a viver em Genebra. Quanto ao Ipês, porém, a CPI fracassou em estabelecer suas ligações com o Ibad, impossibilitada de quebrar o sigilo bancário de João Batista Leopoldo Figueiredo, presidente do Ipês. Primo-irmão do último presidente do ciclo militar, Figueiredo também era presidente do Banco Itaú, da Scania Wabis e de uma companhia de navegação. Perante a CPI, afirmou que “o Ipês nunca se envolvera em política partidária ou contribuíra para campanhas eleitorais”.

O fracasso da CPI, segundo Dreifuss, se deu “por três motivos: por fontes financeiras comuns, pela participação de um mesmo membro nas duas organizações ou mesmo por ação conjunta”. O relator da CPI, Pedro Aleixo, que viria a ser o vice-presidente do governo Costa e Silva (1967-1969), embora afirmasse em relatório final que “não foram encontrados vestígios da participação do Ipês no pleito”, era supostamente articulado com a rede Ibad. Porém, conforme pesquisa do historiador uruguaio, “o próprio Hasslocher era membro do Ipês”. Suas ligações eram tão fortes que levaram Mello Flores a comentar que “o Ipês havia meramente se aglutinado ao Ibad”. Dessa forma, conclui Dreifuss, “o Ipês, é bem claro, levava uma vida dupla, tanto política quanto financeiramente”.

(*) Informações retiradas de Hernán Ramiro Ramírez, René Armand Dreifuss (‘1964: A conquista do Estado’), depoimento de Jorge Oscar de Mello Flores ao CPDOC/FGV em 1996/1997, Dulce Pandolfi,Gabriel da Fonseca Onofre, Osny Duarte Pereira (‘Quem faz as leis no Brasil?’) e outras fontes referenciadas

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