Chile: no limbo entre o fim de Pinochet e o sonho atualizado de Allende

Após três meses de manifestações quase diárias, o país andino se encontra em meio à disputa entre o já fracassado modelo pinochetista e o anseio popular por esta versão atualizada do sonho allendista, que ainda precisa mostrar que tem força suficiente para vencer o poder econômico e militar daqueles que não querem deixar que sua hegemonia termine assim, sem mais.

Foto: Susana Hidalgo

Tudo acabou há exatos três meses. Para um país que celebra sua primeira independência (considerando o fim da colonização espanhola) em um 18 de setembro, chama a atenção que uma nova data histórica possa estar se consolidando no dia 18 de outubro.

Desde aquele dia, o Chile vive um clima de revolta social constante, com manifestações nas ruas quase todos os dias, que começaram com uma revolta contra o aumento da passagem do metrô de Santiago, e rapidamente passaram a um questionamento a todo o modelo ultraneoliberal instalado pela ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990).

Estamos falando das maiores manifestações já vistas na América Latina, talvez neste século. Os protestos dos dias 25 de outubro (em pleno Estado de Exceção) e 8 de novembro chegaram a mobilizar mais de 2 milhões de pessoas, em um país de 18 milhões de habitantes. As imagens do Centro de Santiago totalmente inundado de gente com as bandeiras negras pelo fim do modelo econômico, as bandeiras mapuche pedindo respeito aos povos originários, os lenços verdes do movimento feminista, todos esses símbolos dominam o imaginário popular até hoje.

Ainda é cedo para dizer que tipo de país surgirá desse processo, mas, por enquanto, podemos dizer que isso já é um processo. Não se trata de mero desabafo social de insatisfação, que depois fica tudo por isso mesmo e a vida volta ao normal. Depois de três meses, ninguém mais sabe o que é normal no Chile, e a grande maioria está decidida a estabelecer uma nova normalidade, seja lá qual for.

No Brasil de Bolsonaro, alguém mais traumatizado poderia temer pela ascensão da extrema direita nesse cenário, e não seria totalmente absurdo que isso acontecesse, mas a verdade é que seria o cenário menos provável. Não só porque a revolta social nasceu de uma insatisfação generalizada com um modelo econômico que a ultradireita defende como também porque a fortíssima repressão do atual governo contra os manifestantes trouxe à tona a memória de como esse modelo foi implantado também a ferro e fogo.

Recordemos que dois dias depois daquela primeira grande manifestação em 18 de outubro, e com três dias seguidos de revolta, o presidente Sebastián Piñera – um dos empresários mais ricos do país e irmão de um dos chicago boys de Pinochet – decreto Estado de exceção, colocou as Forças Armadas nas ruas e declarou que o país “está em guerra, contra um inimigo poderoso”. Não disse quem era esse inimigo, e ficou subentendido que se referia ao próprio povo.

Foto: Reprodução/Twitter/Arquivo

Repressão

Os oito dias de Estado de exceção foram uma espécie de remake mal ensaiado da ditadura pinochetista, com direito a toque de recolher, prisões arbitrárias, pessoas desaparecendo ou sendo torturadas. Das 29 mortes registradas até agora pelo INDH (Instituto Nacional de Direitos Humanos), 22 aconteceram durante a intervenção militar. E isso que o INDH é acusado de “conivência com o governo” por algumas organizações de direitos civis que contabilizam mais de 60 casos – o diretor do Instituto, Sergio Micco, chegou a ser criticado por seus próprios funcionários quando disse que as violações aos direitos humanos durante os protestos “não são sistemáticas”.

Além das mortes, os três meses de revolta social no Chile também produziram mais de 30 mil detenções, das quais ao menos 5 mil foram consideradas ilegais ou arbitrárias. Mais de 2 mil denúncias por torturas ou agressões físicas por parte de pessoal militar ou policial. Também houve 84 casos de abusos sexuais, cometidos contra homens e mulheres. Em todos esses aspectos, ao menos metade dos casos ocorreram durante o Estado de exceção, entre os dias 20 e 27 de outubro de 2019.

As lesões oculares graves são um caso à parte. Primeiro, porque a maioria aconteceu depois do Estado de exceção, o que significa que são resultado a ação dos Carabineros (polícia militarizada, similar à PM), que dispara balas de borracha e de chumbinho contra manifestantes na altura do rosto. Até o momento, já são mais de 300 os casos de visão afetada, e 192 os casos de perda de visão de um dos olhos, além de duas pessoas que perderam a visão de ambos os olhos: o estudante de psicologia Gustavo Gatica e a assistente social Fabiola Campillay.

Todos esses casos já provocaram quatro processos contra o presidente Sebastián Piñera e seus principais ministros da área da Segurança Pública e Defesa por violações aos direitos humanos, e também um processo de impeachment, que terminou sendo arquivado graças a uma manobra da direita. Na Justiça, o presidente neoliberal ainda está com a corda no pescoço. Depois do fracasso do processo no Legislativo, a população espera que o Judiciário atue para condená-lo por sua responsabilidade nos crimes cometidos.

Segundo pesquisa publicada nesta semana pelo instituto CEP, Piñera tem apenas 6% de aprovação e 82% de rejeição. Além disso, 56% chilenos consideram que ele é responsável pelas violações cometidas durante as manifestações.

Manifestação no Chile – Foto: Reprodução/Twitter

Modelo econômico

A história dirá que no dia 18 de outubro de 2019, o processo chileno saltou de um simples movimento contra um aumento de passagem a uma revolta contra todo o sistema, assim, do nada. Mas a verdade é que essa revolta já estava batendo na trave há muito tempo.

O Movimento Estudantil, por exemplo, realizou grandes ondas de manifestações contra a mercantilização da educação em 2000, em 2006/07 e em 2011/12. Em 2015 surgiram as primeiras grandes marchas contra o sistema previdenciário dominado pelos bancos e sob regime de capitalização individual – o sonho de Paulo Guedes, mas que no Chile só tem gerado aposentadorias miseráveis, e que entrou em colapso nesta última década. No ano seguinte, foi a vez das primeiras marchas pelo direito à saúde.

Não era difícil imaginar que em algum momento essas pautas se reuniriam em uma só luta, assim como não era fácil prever se aconteceria naquele 18 de outubro (como aconteceu) ou em qualquer outro momento.

Mas é interessante que o povo mobilizado rapidamente tenha sabido canalizar essa insatisfação ao modelo no principal elemento que amarra tudo isso, que é a constituição de 1980, imposta pelo ditador e vigente até os dias de hoje.

A repressão de Piñera lembrou o país que a violência foi a forma como o modelo e a carta magna foram impostos, e agora é a forma com a que tentam se defender, e a partir de novembro, a grande demanda do povo mobilizado passou a ser a de uma nova constituição, que permita também a elaboração de um novo modelo de país.

A pressão foi tão grande que a direita cedeu e aceitou a instalação de um processo constituinte, que começará com um plebiscito, a ser realizado no dia 26 de abril. Ou seja, tardará mais três meses para que os chilenos possam votar em duas perguntas: se querem ou não uma nova constituição, e se querem que essa nova constituição seja realizada pelos políticos tradicionais ou por representantes dos movimentos sociais, em uma assembleia constituinte.

As pesquisas de opinião dizem que o apoio à nova constituição sempre supera os 80%. No caso da assembleia constituinte, o menor índice de apoio em uma pesquisa foi um 67%. Mas claro, isso é antes do começo da campanha nos meios de comunicação, que começa em fevereiro, e a direita prepara suas surpresas para tentar reverter o quadro.

Foto: Reprodução Twitter

Protagonismo feminino e feminista

Em meio a esse panorama, vale destacar também a liderança feminina e feminista nesse processo. A performance “Un violador en tu camino”, do coletivo Lastesis foi um sucesso local e mundial. No mundo, se tornou símbolo da luta contra a violência de gênero. No Chile foi um recado atendido: se estamos construindo um país novo, ele terá que ser com respeito às mulheres, começando com a paridade de gênero, ou não será.

Foi assim que se constituiu uma frente transversal para aprovar uma lei de paridade de gênero no processo constituinte. Transversal mesmo, com apoio até mesmo de deputadas de direita, algumas que até há pouco tempo se diziam “antifeministas”. O projeto prevê que a assembleia constituinte deverá ter igual quantidade de vagas para homens e mulheres, e já foi aprovado na Câmara, só falta passar pelo Senado.

Dessa frente feminista também surgem lideranças importantes, e de diferentes gerações, como a jovem Karol Cariola, do Partido Comunista, a também jovem Gael Yoemans, presidenta do partido Convergência Social (o mais à esquerda dentro da Frente Ampla), e a veterana, mas também comunista Carmen Hertz, a advogada que colocou Pinochet no banco dos réus nos Anos 90.

Foto: Crative Commons

Entre Allende e Pinochet

Há 50 anos, Salvador Allende chegava ao poder com um discurso – muito criticado por Fidel Castro – de que a sua seria uma revolução democrática, sem armas, sustentada pelo povo.

O tempo, a médio prazo, deu razão ao cubano. Três anos depois, o Chile viveu o golpe de Estado mais violento da história, com as Forças Armadas bombardeando o Palácio de La Moneda e derrubando o governo socialista, para impor o ditador Augusto Pinochet e, com ele, um modelo econômico ultraneoliberal que, durante décadas, foi a referência das elites, dos grandes empresários e dos partidos de direita do Brasil e de toda a América Latina.

Os chilenos aguentaram quatro décadas dessa sociedade sem direitos, onde até os temas sociais como a educação e a saúde são bens de consumo, e isso supostamente era um sucesso. Quase todos os meios de imprensa desde a Baixa Califórnia até o Cabo de Hornos defendiam o mito da harmonia desse modelo tão bom que foi instaurado à força pela ditadura mais sanguinária do continente. Vários presidentes na região foram eleitos prometendo transformar seus países num Chile, o último deles foi Jair Bolsonaro, com a ajuda do seu chicago boy Paulo Guedes.

Como lembrado aqui no primeiro parágrafo, tudo isso acabou há exatos três meses. Com a população permanentemente nas ruas, Piñera teve que admitir a verdade: que o Chile é um dos países mais desiguais do mundo, que o sistema neoliberal produz uma miséria que um endividamento que as pessoas não suportam mais, que o paraíso de Guedes e Bolsonaro era uma mentira.

O presidente chileno tentou lançar medidas sociais para reduzir as desigualdades em temas como saúde e previdência, e também prometeu aumentar a renda mínima dos chilenos, mas nada disso freou a queda da sua popularidade, que agora está em 6%.

Enquanto isso, as manifestações continuam, bem menores que aquelas que chegaram a ter mais de 2 milhões de pessoas nos dias 25 de outubro e 8 de novembro. A partir da confirmação do plebiscito, os esforços de muitos passaram a ser canalizados nas campanhas.

Não se pode falar em normalização, apenas em uma meia calmaria, provocada pela perspectiva de que o processo democrático possa terminar de vez com o modelo legado por Pinochet, e em um processo similar ao que um dia sonhou Allende, uma revolução desarmada, democrática, e que não seja derrubada à força, como em 1973.

Por enquanto, o Chile vive um limbo entre o já fracassado modelo pinochetista e o anseio popular por esta versão atualizada do sonho allendista, que ainda precisa mostrar que tem força suficiente para vencer o poder econômico e militar daqueles que não querem deixar que sua hegemonia termine assim, sem mais.

A batalha do Chile será uma das mais importantes de 2020, para o próprio país, para a América Latina, talvez para o mundo inteiro. E está só começando.

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