‘Educação medicalizada’ preocupa especialistas

Adriane Primo

  • Crianças agitadas podem estar doentes ou se comportam dessa maneira por conta de outros fatores - Foto: Divulgação

    Crianças agitadas podem estar doentes ou se comportam dessa maneira por conta de outros fatores

A omissão da responsabilidade familiar e educacional para com o desempenho escolar de crianças e adolescentes tem exposto esse grupo a uma situação de risco como o aumento de diagnósticos de  transtorno do deficit de atenção com hiperatividade (TDAH), problema que, geralmente, é identificado no ambiente escolar.

A afirmação é do médico especialista em  psiquiatra da infância e adolescência,  Rossano Cabral, que participou do Seminário Internacional “A Educação Medicalizada”, em sua IV edição (ver texto abaixo), realizado recentemente em Salvador.

No evento, que reuniu especialistas de vários países, foram debatidos questões sobre  diagnósticos imprecisos, que têm contribuído para aumentar o consumo de substâncias tarja preta naquela faixa etária.  Bem como discutir  qual a influência familiar nesse contexto além do papel da escola.

Tais questões estão inseridas em discussões de âmbito educacional, político e social que culminaram no seminário.

O TDAH está associado ao desempenho escolar e, portanto, se manifesta no seio educacional. Este fato, na visão de Rossano, coloca a instituição como  co-responsável pelo  tratamento do problema que, para ele, já faz parte do contexto pedagógico. No entanto,  não isenta a família do dever maior.

“Existe um tipo de exigência da escola, da família e da sociedade como um todo para estabelecer um padrão de comportamento. E essa é uma questão que diz respeito ao processo de aprendizado “, avalia.

Consumo em alta

Segundo o Boletim Brasileiro de Avaliação de Tecnologias em Saúde de 2014, entre os anos de 2002 e 2006, a produção brasileira do metilfenidato aumentou de 40 kg para 226 kg, colocando o país na posição de segundo líder no mundo na prescrição da substância.

Em 2011, foram vendidos 1.2 milhão caixas do medicamento no país,  elevando-o ao posto do psicoestimulante sintético mais consumido em território nacional, de acordo com o Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados (SNGPC).

Foi constatado ainda que na Bahia houve um salto da venda do produto, passando de 433 caixas vendidas no primeiro semestre de 2009 para 15.102 caixas no mesmo período em 2014.  Os altos números   contribuíram para um debate acirrado acerca do tema, que tem levado pais a embarcarem seus filhos em um terreno perigoso.

Diagnóstico

A Associação Brasileira de Deficit de Atenção define o TDAH como um “transtorno neurobiológico, de causas genéticas, que aparece na infância e frequentemente acompanha o indivíduo por toda a sua vida”.

Mas, a definição é controversa, pois não existem pesquisas suficientes que comprovem  que o TDAH está especificamente ligado a condições  neurológicas e genéticas.

Visto que a patologia está associada a fatores sociais que   integram a vida da criança e do adolescente, como explica o médico Rossano Cabral.

“É preciso ter cuidado com o diagnóstico porque existem crianças patologicamente agitadas e desatentas, bem como aquelas que se comportam dessa maneira por conta da idade ou de fatores externos. A questão é que costumamos enfatizar mais o lado patológico do que o ambiental”.

O psiquiatra salienta que o tratamento medicamentoso vai depender fundamentalmente da gravidade do quadro.

“Em alguns casos, o remédio precisa entrar imediatamente, mas ainda assim, tem que  estar associado a estratégias terapêuticas, pois o medicamento atenua o problema sintomático, mas  não resolve a questão por completo”, afirma.

Além disso, a  ingestão de medicamentos como Ritalina possui alguns efeitos colaterais. Perda de apetite, alteração no sono, desaceleração da curva de crescimento (se o uso for prolongado), além de dependência química são alguns deles.

Para ele, a escola  “precisa se reempoderar”. “Quando  resgatar seu potencial, vai conseguir entender,  intervir e resolver   boa parte destes casos. Eu critico é exatamente essa aposta exagerada na resposta médica para resolver todos os dilemas”.

Orientação

Segundo a orientadora pedagógica do ensino médio do Sartre COC, Marta  Oliveira, quando o professor identifica uma dificuldade descomunal, a orientação é convidar os pais para um diálogo e aconselhá-los a buscar apoio externo.

“Aconselhamos a buscarem um psicopedagogo. Esse profissional é que vai orientá-lo a um outro especialista, caso seja necessário,  a escola fica aberta se esse profissional quiser acompanhar mais de perto o desenvolvimento do aluno”, explica a educadora.

Na rede pública os encaminhamentos são semelhantes ao que ocorrem nas escolas particulares. E essa é a crítica de Rossano.

”Criança é aprisionada por erro de diagnóstico’

“Era preciso desver o mundo para encontrar nas palavras novas coisas de ver”. Este  trecho  do livro “O menino do Mato”, do autor cuiabense Manoel de Barros,  foi o emblema usado para compor o IV Seminário Internacional “A Educação Medicalizada: Desver o mundo, perturbar os sentidos”.

O evento aconteceu na semana passada no auditório  da Faculdade de Tecnologia Senai Cimatec, na capital baiana.

Segundo Lygia Viegas,   psicóloga, professora da Ufba, membro do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade e uma das organizadoras do evento, o  objetivo do seminário é colocar o tema em discussão de uma forma cada vez mais ampla, afim de refletir sobre as instâncias que o processo de medicalização da educação está inserido.

“É preciso desconstruir soluções conservadoras. Precisamos pensar que escola é essa, se tem estrutura, se as condições de trabalho dos professores são adequadas. E também pensar que criança é essa que está na sala de aula. Com acesso a tanta informação e tecnologia, as crianças mudaram seus comportamentos. É preciso repensar a forma de ensinar para não precisar recorre a medicalização. Porém, a questão requer um debate amplo, de caráter político e educacional”, diz.

A pesquisadora do Centro de Investigação e Intervenção Educativa de Porto, Rosa Soares Nunes,  destacou  o consumismo de medicamentos dentro do discurso capitalista. “É aprisionar a criança em um presídio que não é seu, porque foi erroneamente diagnosticada”, disse.

Lygia destaca ainda o desafio de realizar um evento do porte  do porte do seminário com os problemas enfrentados pela universidades estaduais e federais e com a rede em greve.

“Salvador tem um núcleo muito forte. Mas, foi um grande desafio para nós. Principalmente, por ser um evento gratuito, o qual fizemos questão de sê-lo, pois entendemos que assuntos como este precisa estar ao alcance de todos. No entanto, felizmente conseguimos, com a ajuda dos  parceiros”, disse.

O seminário reuniu especialistas  das mais diversas áreas de educação e saúde, como psicólogos, pedagogos, médicos, psiquiatras, fonoaudiólogos, a exemplo do neurocientista e professor da Universidade de Columbia (EUA) Carl Hart.

Fonte: A Tarde

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