Mulheres vítimas de violência doméstica buscam na arte uma forma de superar seus traumas

Uma das mulheres acolhidas pelo Colcha e Retalhos, em Turiaçu, na Zona Norte do Rio
Uma das mulheres acolhidas pelo Colcha e Retalhos, em Turiaçu, na Zona Norte do Rio Foto: Gustavo Miranda
Diego Amorim

“Sofri violência sexual e psicológica do meu próprio marido. Fui abusada por alguém que deveria me proteger. Foram anos convivendo com a insegurança e o medo dentro de casa. Com depressão, eu vivia à base de remédio. Hoje tenho uma filha de 6 anos que é fruto de um desses abusos sexuais”. O relato prova que o drama de Clara (Bianca Bin) na novela “O outro lado do paraíso” não está restrito apenas à ficção. Na vida real, muitas mulheres vivem relacionamentos abusivos e sofrem violência doméstica todos os dias. Um exemplo é o caso de Açucena, de 42 anos, dona da história relatada acima. Para tentar amenizar essa triste realidade, 75 mulheres participam de um grupo de acolhimento social e empoderamento feminino na Zona Norte do Rio de Janeiro.

— É um projeto de aceitação, sem julgamentos. Cada uma divide sua história, e, juntas, elas se transformam em líderes. Nós as encorajamos e mostramos a elas quais são seus direitos — comenta a presidente do Movimento Permanente de Mulheres, Thereza Santos, que criou o projeto Colchas e Retalhos em parceria com a fábrica Piraquê, em Turiaçu, na Zona Norte do Rio.

Por meio do artesanato, elas buscam recuperar a autoestima e se tornar empreendedoras, capazes de caminhar sozinhas. Segundo Thereza, além das aulas de artesanato, as mulheres aprendem a fazer avaliações de estoque, orçamento e preço dos produtos. São três encontros por semana, nos quais elas compartilham os dramas vividos. Nesta reportagem, os nomes verdadeiros dessas mulheres foram substituídos por nomes de flor, como forma de preservá-las.

Rosa, de 39 anos, foi abusada sexualmente aos 11 por um assaltante que invadiu sua casa. Após uma adolescência difícil e marcada por problemas psicológicos, ela se casou aos 18, imaginando ter encontrado seu príncipe encantado. No entanto, o que parecia um sonho foi se tornando um pesadelo com o passar do tempo. As agressões cometidas pelo marido eram tantas que, em meio ao desespero, Rosa chegou a considerar a traição do marido algo positivo:

— Com um caso extraconjugal, ele passava mais tempo na rua, e não em casa. Foi um alívio dentro daqueles dez anos de intimidação. Lembro que, quando minha filha nasceu, eu montei todo o enxoval. Num determinado dia, ele jogou tudo no lixo, com a justificativa de que o dinheiro tinha vindo de outro homem.

Bastante emocionada, Rosa lembra com exatidão o dia em que sua mãe chegou sem avisar e ouviu todas as ameaças feitas pelo marido. Segundo ela, o único medo era perder a guarda da filha, caso decidisse abandonar o lar. Por isso, ela foi até a Delegacia da Mulher e prestou queixa contra o agressor, na tentativa de proteger sua integridade. No entanto, quando soube que a mãe sairia de casa, a adolescente de então 14 anos fugiu e nunca mais voltou.

— Até hoje eu tento trazê-la de volta. Faz três anos que ela vive fora de casa, me culpando por eu ter abandonado seu pai. É uma dor muito grande. Fiquei sabendo inclusive que ela já foi agredida por ele durante uma visita, mas mesmo assim ela não aceita a minha decisão — conta Rosa.

Mulheres vítimas de violência doméstica se unem em grupo de apoio na Zona Norte do Rio
Mulheres vítimas de violência doméstica se unem em grupo de apoio na Zona Norte do Rio Foto: Gustavo Miranda

A questão da culpa é algo que perturba grande parte dessas mulheres. Todas contam já ter ouvido frases como “se a mulher soubesse se comportar melhor, haveria menos estupro”. Margarida, de 53 anos, diz que tenta até hoje se livrar desse sentimento. Casada e com um alto padrão de vida, ela viu seus sonhos irem por água abaixo após o casal perder tudo e ela ser considerada a culpada:

— Ouço humilhações todos os dias, que levam minha estabilidade emocional embora. Tenho um filho de 15 anos e me sujeito a todo esse sofrimento por causa dele. Às vezes eu vou trabalhar sem ânimo e com a autoestima muito baixa. Mas, quando chego aqui (ao Colcha e Retalhos), converso com minhas amigas e sinto que não estou sozinha. Precisamos nos dar força e coragem.

Dados do Instituto de Segurança Pública (ISP) mostram que, no primeiro semestre deste ano, 11.273 mulheres foram agredidas no Rio de Janeiro. Em cerca de 62% dos casos, a agressão ocorre dentro das próprias residências. Considerando todo o Brasil, foram feitos no ano passado mais de 140 mil relatos de violência ao Ligue 180, canal de denúncias aberto às mulheres. Em 65% desses casos, os crimes foram cometidos por homens com quem as vítimas têm ou tiveram algum vínculo afetivo, como maridos.

Além disso, os atendimentos registrados revelam que, quando as vítimas possuem filhos, cerca de 80% deles presenciaram ou sofreram agressões. Dentro desse cenário está Violeta. Com 32 anos, ela se casou aos 14 e engravidou logo depois. Nos primeiros momentos de dificuldade financeira ao lado do marido, surgiram as agressões físicas. Ela conta que apanhava e que tinha a cabeça jogada contra a parede quase sempre na frente dos filhos. Mas buscava não demonstrar para a família e os amigos todas as dores físicas e emocionais que enfrentava:

— Precisou meu filho chegar e me dizer “Mãe, você não pode mais apanhar do meu pai”. Foram quase 15 anos passando por isso, sendo agredida quase que diariamente. A mulher precisa ter coragem para dar um basta no relacionamento abusivo. Graças a Deus, eu tive.

O Ligue 180 foi criado pela Secretaria de Políticas Para as Mulheres da Presidência da República (SPM-PR), em 2005, para servir de canal direto de orientação para a população feminina em todo o país. Além disso, a Lei Maria da Penha estabelece que toda mulher tem direito à proteção social e do Estado, inclusive contra atos de violência sofridos no ambiente privado ou familiar. Violência doméstica é crime. Denuncie.

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