O que seria proibido se o AI-5 ainda estivesse em vigor?

Decreto emitido pelo regime militar há 50 anos restringia desde o acesso a novelas com cenas de violência e de nudez e canções da MPB até a possibilidade de ler notícias livres de censura e ir às urnas.

    

A Polícia do Exército em 1968, ano em que o AI-5 instaurou rígido controle a opositores do regime militarA Polícia do Exército em 1968, ano em que o AI-5 instaurou rígido controle a opositores do regime militar

Em 1968, enquanto a população protestava nas ruas sob o lema “é proibido proibir”, os generais do regime militar brasileiro (1964-1985) se preparavam para endurecer ainda mais a ditadura.

Em 13 de dezembro daquele ano, o presidente Artur da Costa e Silva emitiu o Ato Institucional de número 5, o AI-5, que restringiu os direitos da população e instaurou a censura.

“Durante o AI-5, não existiam garantias e direitos civis mínimos para nenhum cidadão, de nenhum grupo ou estrato social”, comenta Marcos Napolitano, professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP).

Segundo historiadores, o fato mais obscuro atribuído ao AI-5 foi o de dar poder de exceção aos governantes, que tinham carta branca para punir qualquer um que fosse considerado uma ameaça ao regime.

“Os atos praticados pelas autoridades com base no AI-5 não podiam ser questionados ou examinados nem mesmo nos tribunais. Foi uma espécie de retorno ao poder absoluto do governo”, explica o historiador Rodrigo Patto Sá Motta, autor de livros sobre a ditadura e membro da Comissão da Verdade em Minas Gerais.

O AI-5 vigorou até dezembro de 1978. Cinquenta anos após sua instauração, Sá Motta afirma que a presença de um pensamento repressivo ainda pode ser observada no Brasil.

“Ainda não conseguimos superar efetivamente o autoritarismo da época do AI-5, inclusive no plano da memória social, já que muitos negam ter havido uma ditadura no Brasil”, diz o historiador.

“A ideia de criminalização da política e do ativismo social, que é uma das essências do AI-5 e do regime militar como um todo, ainda seduz muitas correntes da opinião pública da extrema direita e setores ultraconservadores, alguns deles com presença no sistema jurídico”, completa Napolitano.

A lista abaixo mostra direitos e ações hoje considerados cotidianos que seriam proibidos no Brasil e passíveis de punição caso o AI-5 ainda estivesse em vigor:

Votar e ser votado

“Se o AI-5 ainda existisse, não haveria eleições no Brasil e nem debates políticos acalorados”, aponta Napolitano, já que votar e ser votado não era um direito fundamental durante toda a ditadura.

Naquela época, as eleições eram indiretas. Seis presidentes governaram o Brasil sem serem votados pelo povo. Três deles foram escolhidos pelo Congresso Nacional, e três, pelo Colégio Eleitoral.

Criticar o governo

“Um dos nossos ‘esportes nacionais’ preferidos atuais, falar mal do governo e dos políticos na internet, não só seria proibido, como seria crime”, explica Napolitano.

Vale lembrar que jornalistas e demais críticos do regime militar foram exilados do Brasil ou foram assassinados pelo governo durante a ditadura.

O caso mais emblemático foi o do jornalista Vladimir Herzog, torturado e morto pelos militares enquanto ocupava o cargo de diretor de jornalismo da TV Cultura. O atual atestado de óbito do jornalista traz: “a morte decorreu de lesões e maus-tratos sofridos durante o interrogatório em dependência do II Exército – SP (DOI-Codi)”.

Redes sociais e internet

Provavelmente seria proibido ter um blog caso o AI-5 ainda estivesse em vigor, já que o ato “ampliava a criminalização das opiniões e atividades políticas dos cidadãos”, explica Napolitano.

Ter um perfil nas redes sociais também poderia ser muito perigoso, pois provavelmente se transformaria em mais um mecanismo de vigilância do Estado. Todo cuidado seria pouco, e até uma foto ou uma curtida poderia ser considerada um ato de subversão contra o regime militar.

“Conversas nas redes sociais certamente seriam monitoradas e poderiam abrir caminho para ações repressivas. Teríamos que manter cuidado na internet, pois o AI-5 dava ao governo poder discricionário para punir tudo o que ele considerasse subversivo. Como o entendimento sobre subversão pode ser elástico, a sensação de insegurança seria obviamente grande”, afirma Sá Motta.

Sem direito de dar opinião

As liberdades de expressão e manifestação são direitos fundamentais garantidos a todos os brasileiros desde 1988. Durante o AI-5, contudo, nem mesmo a imprensa tinha liberdade para noticiar coisas que a cesura do governo não aprovasse.

“Seria improvável que pessoas consideradas inimigas do Estado tivessem chance de se comunicar com o público por meio de reportagens, comunicados etc, bem como seria pouco provável que a situação de violação dos direitos, como presos e desaparecidos políticos pudesse ser denunciada”, exemplifica Sá Motta.

Do mesmo modo, seria crime organizar, participar ou apoiar greves de trabalhadores – como a greve dos caminhoneiros deste ano –, manifestações populares e protestos políticos – como os protestos de junho de 2013.

Ler jornais na íntegra

Encontrar na mídia, assim como ler ou compartilhar informações sobre escândalos políticos, denúncias, corrupção, entre outros problemas do cenário brasileiro seria impossível, uma vez que os jornais, antes de irem para as bancas, passavam pelo censor do governo. Se algo não agradasse, a notícia era retirada da página.

Para tapar o buraco, eram colocados trechos de livros e até receitas de bolo. Segundo levantamento do jornal Estado de São Paulo, entre agosto de 1973 e janeiro de 1975, versos de Os Lusíadas, de Luís de Camões, foram colocados 655 vezes nas páginas do jornal.

Tema hoje recorrente nos jornais, a atual Operação Lava Jato, além de não ser noticiada, sequer existiria se o AI-5 vigorasse, pois “não haveria Justiça independente para investigar a corrupção dos agentes públicos”, aponta Napolitano.

Cantar músicas de MPB

A censura feita pelo governo durante o AI-5 se estendia à toda manifestação artística e cultural. Diversos artistas da MPB tiveram que alterar letras de músicas ou deixar de cantá-las para não serem presos. Foi o caso de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, entre outros.

Se o AI-5 ainda existisse, cantarolar versos como “caminhando e cantando e seguindo a canção”, trecho de Pra Não Dizer que Não Falei das Flores, poderia resultar em perseguição política, já que o próprio autor da canção, Geraldo Vandré, foi exilado pelo AI-5 em 1969.

Assistir à novela Roque Santero

Um dos elementos da censura era cortar cenas e proibir produções consideradas “atentados à moral e aos costumes” ou que “manchassem a imagem” do Brasil. Era proibido, por exemplo, criticar a polícia, a segurança pública, o governo, assim como cenas de nudez, de cunho sexual, de drogas e violência.

Foi por esses motivos, por exemplo, que a novela Roque Santero, da Rede Globo e hoje considerada um clássico da TV brasileira, foi censurada pelo AI-5 em 1975. A trama pôde ir ao ar somente com o fim da ditadura, em 1985.

No campo do cinema, o clássico Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick, que conta a história de adolescentes transgressores europeus, teve sua exibição proibida no Brasil durante o período em que vigorou o AI-5.

Atualmente, filmes como Cidade de Deus e Tropa de Elite, com cenas de pobreza, drogas e violência, assim como 50 Tons de Cinza, que traz cenas de nudez, provavelmente seriam censurados no Brasil.

“Inocente” até que se prove o contrário não existiria

A máxima “inocente até que se prove o contrário” seria invertida se o AI-5 ainda vigorasse. Uma simples denúncia anônima poderia colocar em risco a liberdade de uma pessoa antes mesmo do seu julgamento.

“Como tudo funcionava à base de suspeitas, as pessoas poderiam ser presas e torturadas antes de provarem sua inocência. Além disso, o governo tinha o poder de suspender os direitos políticos de quem considerasse inimigo do Estado”, explica Sá Motta.

Servidor público sob perigo

Provavelmente não seria um bom negócio ser funcionário público com o AI-5 em vigor. Com o decreto, “os funcionários públicos perderam as garantias constitucionais e podiam ser exonerados ou aposentados de acordo com a vontade do Poder Executivo, ou seja, o Presidente da República, a qualquer momento”, explica Sá Motta.

A DITADURA BRASILEIRA (1964-1985)

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A perseguição política

A perseguição de adversários se concentrou nos meses após o golpe de 1964 e entre o final da década de 60 e início dos anos 70. Mais de 5 mil pessoas foram alvo de punições como demissões, cassações e suspensão de direitos políticos. Ao todo, 166 deputados foram cassados. O regime também perseguiu membros em suas fileiras. Pelo menos 6.951 militares foram presos, desligados e presos.

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Assassinatos e desaparecimentos

Assim como a perseguição política, os assassinatos de opositores promovidos pelo regime se concentraram em algumas fases da ditadura. Mas todos os generais-presidentes foram tolerantes com a prática. A Comissão Nacional da Verdade (CNV) apontou a responsabilidade do regime militar pela morte de 224 pessoas e pelo desaparecimento de 210 – 228 delas morreram durante o governo Médici (1969-1974).

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Tortura

Na ditadura, a tortura virou uma prática de Estado. Já no governo Castelo Branco (1964-1967) foram apresentadas 363 denúncias de tortura. Na fase de Médici (1969-1974), seriam mais de 3.500. O relatório “Brasil: Nunca Mais” lista 283 formas de tortura aplicadas pelo regime, como afogamentos, choques elétricos e o pau de arara. Ao longo de 21 anos, houve mais de 6 mil denúncias de tortura.

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A luta armada

Ao dar o golpe, os militares citaram a corrupção e o esquerdismo do governo Jango. A luta armada, às vezes apontada como razão de ser da ditadura, nem foi mencionada. Só em 1966 ocorreram as primeiras ações relevantes de grupos de esquerda, que cometeriam atentados e assaltos com o objetivo de promover uma revolução. Em 1974, todos já haviam sido aniquilados, mas a ditadura duraria mais uma década.

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Os atos institucionais

O regime militar recorreu a uma série de decretos chamados atos institucionais para manter seu poder. Entre 1964 e 1969 foram promulgados 17 atos, que estavam acima até da Constituição. Alguns promoveram a cassação de adversários (AI-1) e a extinção dos partidos políticos existentes (AI-2). O mais duro deles, o AI-5, instituiu em 1968 a censura prévia na imprensa e a suspensão do “habeas corpus”.

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A censura

Boa parte da imprensa apoiou o golpe, mas vários jornais passaram a criticar o regime, alguns mais cedo, outros mais tarde. Com o AI-5, passou a vigorar uma censura prévia em vários meios de comunicação. O regime censurava até más notícias, promovendo uma imagem fictícia da realidade do país. Epidemias, desastres e atentados eram temas vetados. Músicas, filmes e novelas também foram censurados.

Brasilien Militärdiktatur (Biblioteca da Presidência da República)

Colaboração com outras ditaduras

Junto com os regimes da Argentina, Bolívia, Chile, Paraguai e Uruguai, a ditadura brasileira integrou a Operação Condor, uma aliança para perseguir opositores no Cone Sul. O regime também ajudou a treinar oficiais chilenos em técnicas de tortura. Um dos casos mais notórios de colaboração foi o sequestro em 1978 de dois ativistas uruguaios em Porto Alegre, que foram entregues ao país vizinho.

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O milagre econômico…

Após três anos de ajustes, os militares promoveram a partir de 1967 investimentos e oferta de crédito. A fórmula deu resultados. Entre 1967 e 1973, a expansão do PIB brasileiro foi de 10,2% ao ano. O país passou a ser a décima economia do mundo. O crescimento aumentou a popularidade do regime durante a fase mais repressiva da ditadura. Mas o “milagre brasileiro” duraria pouco.

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… e a derrocada econômica

A conta do “milagre” chegou após os dois choques do petróleo e uma série de decisões desastradas para manter a economia aquecida. Ao fim da ditadura, o país acumulava dívida externa 30 vezes maior que a de 1964 e inflação de 225,9% ao ano. Quase 50% da população estava abaixo da linha de pobreza. Os militares pegaram um país com graves problemas econômicos e entregaram um quebrado.

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Corrupção

A censura e a falta de transparência favoreceram a corrupção. O período foi marcado por vários casos, como o Coroa-Brastel, Delfin, Lutfalla e a explosão de gastos em obras. O regime promoveu e protegeu figuras como Paulo Maluf e Antônio Carlos Magalhães, que já nos anos 70 eram suspeitos em casos de corrupção. Também abafou casos, como a compra superfaturada de fragatas do Reno Unido nos anos 70.

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Grandes obras

A ditadura promoveu obras faraônicas, divulgadas com propaganda ufanista, como Itaipu e a ponte Rio-Niterói. Algumas foram marcadas por desperdícios e erros, como a Transamazônica e as usinas de Angra. Em 1969, o regime criou uma reserva de mercado para as empreiteiras nacionais ao proibir a atuação de estrangeiras. É nessa época que empresas como a Odebrecht passam a dominar as obras no país.

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Anistia e falta de punições

Em 1979, seis anos antes do fim da ditadura, foi promulgada a Lei da Anistia, perdoando crimes cometidos por motivação política. Mas ela tinha mão dupla: garantiu também a impunidade para agentes responsáveis por mortes e torturas. No Chile e na Argentina, dezenas de agentes foram condenados por violações de direitos humanos após a volta da democracia. No Brasil, ninguém foi punido.

Autoria: Jean-Philip Struck

 

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