‘O retrato de Dorian Gray’, mais jovem do que nunca

O primeiro aspecto descorcertante de “O retrato de Dorian Gray – edição anotada e sem censura” é o que se poderia chamar de paradoxo do tamanho. Costumamos pensar no verbo censurar como sinônimo de suprimir, cortar – não à toa, é uma tesoura seu símbolo universal. No entanto, a edição da obra-prima de Oscar Wilde organizada pelo pesquisador acadêmico Nicholas Frankel (Biblioteca Azul, tradução de Jorio Dauster, 352 páginas, R$ 64,90), alegadamente fiel até a última vírgula à primeira versão datilografada e emendada à mão pelo escritor irlandês em 1890, é consideravelmente menor do que aquela que seria publicada no ano seguinte em livro e admirada por gerações de leitores: tem apenas treze capítulos, sete a menos do que o texto canônico. Que censura foi aquela?

Na resposta a essa pergunta, que não é simples, vamos encontrar o pecado (menor) e a virtude (imensa) do trabalho de Frankel. Primeiro, o pecado: sim, há um leve toque de sensacionalismo na simplificação que o subtítulo abraça ao falar em “sem censura” (no original, uncensored). A realidade é mais complicada. O que houve foi um processo tortuoso em que, em primeiro lugar, o texto passou pelo crivo dos editores da revista americana “Lippincott’s”, que o publicaria ainda em 1890, perdendo cerca de 500 palavras – algo que só chamará de censura pura e simples quem não entende nada de edição. Posteriormente, ao retocar o romance para lançá-lo em forma de livro, coube a Wilde acatar a maioria dos cortes feitos pela revista, promover novos expurgos por sua própria conta e, de forma curiosa, acrescentar-lhe capítulos inteiros.

Eis, em resumo, as duas barreiras que levaram essa versão de “O retrato de Dorian Gray” – publicada em inglês apenas em 2011 – a permanecer inédita por 120 anos: primeiro um editor cauteloso, personagem quase invisível mas presente na gênese da maioria dos clássicos; depois um autor às voltas com o trabalho de polir e dar forma definitiva à sua obra, processo em que o perfeccionismo, a autocrítica e a autocensura se confundem de forma irremediável a cada frase.

Isso não quer dizer que a “edição anotada e sem censura” de Dorian Gray seja apenas uma apelação editorial do gênero baú, equivalente vitoriano daquele “O original de Laura” que Vladimir Nabokov mal terminara de rascunhar quando morreu – e que seu filho decidiu publicar assim mesmo em 2009. Longe disso. Aqui chegamos à virtude imensa do trabalho de Frankel: revelar, por trás da versão eternamente canônica do único romance de Wilde (é tarde para mudar isso), um romance novo. Este livro alternativo não tem interesse apenas para fãs de carteirinha ou estudiosos do autor, embora as criteriosas notas que pululam a cada página lhes garantam delícias em série. Com tradução suntuosa de Jorio Dauster, o que se revela é uma narrativa mais moderna, mais curta, mais concentrada – numa palavra, melhor – que pode e deve ser lida por seus próprios méritos.

Com fôlego mais de novela que de romance, entram em foco os elementos principais da história do elegante e devasso Dorian Gray, cujo retrato envelhece – e se envilece – trancado no sótão enquanto ele próprio se conserva jovem e belo. Sim, fica mais nítida a trama de homoerotismo que une Dorian a seus dois maiores admiradores, o cínico lorde Henry e o apaixonado pintor do retrato, Basil Hallward, mas isso não é tudo. Os amores heterossexuais do protagonista também ganham o benefício de palavras mais diretas: o editor Joseph Marshall Stoddart, da “Lippincott’s”, achou que os leitores se ofenderiam com o termo “amantes”, por exemplo, embora sua revista cultivasse a reputação de certa ousadia moral.

Ainda que por uma simples questão de saúde vocabular, todas essas restaurações são bem-vindas. A principal diferença, contudo, é a comprovação da máxima de que menos é mais. Aparentemente assustado com a recepção hostil que mesmo a versão expurgada tinha merecido de parte da intelectualidade londrina – que não se furtou a lançar piscadelas para a polícia ao falar de doenças e vícios impuros – Wilde tratou de esconder ainda mais, na versão em livro, a natureza profundamente queer de sua história. Os novos capítulos são basicamente demãos de tinta convencionais. Foi assim que o romance ganhou subtramas românticas, lorde Henry se viu com mais algumas páginas para derramar seus espirituosos ditos decadentes de salão e Dorian Gray acabou às voltas com problemas financeiros e um vício em ópio.

Wilde, que àquela altura já vivia no submundo gay londrino uma vida dupla muito parecida com a de seus personagens, tinha bons motivos para se preocupar. Em 1895, seria condenado a dois anos de prisão com trabalhos forçados pelo crime de “flagrante indecência”, leia-se prática homossexual, e o advogado de acusação usaria a versão do romance publicada na “Lippincott’s” – e não a do livro – para reforçar seus argumentos no tribunal. Embora o autor fosse o primeiro a sustentar, em seu credo esteticista, que só a arte interessa, o contexto biográfico torna mais valiosa a versão original do romance na medida em que deixa claro o clima de coerção e violência, ainda que autoimposta, que cercou as modificações posteriores. (Veja)

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