Onda erótica na música brasileira

 

LEONARDO LICHOTE

 

 


Sexo arte. Ilustrações de clipe Dinucci e clipe de Thiago Pethit
Foto: Foto: Divulgação
Sexo arte. Ilustrações de clipe Dinucci e clipe de Thiago Pethit Foto: Divulgação

Em sua casa em Botafogo, a cantora e compositora Iara Rennó escrevia versos como “porque olhos nos olhos penetrou-me/ enquanto mordíamos ambos os lábios/ carnudos doces úmidos e cálidos”. Sem saber disso, em São Paulo, seu colega Kiko Dinucci desenhava casais (às vezes mais pessoas envolvidas, às vezes animais, às vezes pessoas-animais) em situações de sensualidade insinuada ou explícita. Anelis Assumpção começou a publicar poemas explorando a temática em seu blog “Estou sujeita” (estou sujeita.wordpress.com), logo puxando Kiko para um diálogo, usando seus desenhos como estímulo e ilustração. Por outros caminhos, o cantor Thiago Pethit pensou com o diretor Heitor Dhalia o clipe de “Moon”, com cenas de prostituição masculina, ménage à trois gay, transa heterossexual e sexo grupal. Outros vídeos recentes de Matanza, Holger, Hidrocor e Otto tocam também a questão da pornografia e do nu. Pela periferia da canção, na linguagem visual ou poética, o erotismo tempera a nova música brasileira, num movimento (palavra com o sabor do tema) que parece ser mais que coincidência.

— Vejo como uma onda que veio no ar — avalia Iara. — Essas ondas sempre estiveram presentes nas artes. Depois de um período mais careta, comportado ou castrador, o erotismo vem como resposta. As energias criativa e sexual são uma só na filosofia oriental, o erotismo é presente nas mitologias grega e iorubana. É uma energia que de tempos em tempos irrompe, como agora.

Internet atrelada ao fenômeno

Há traços geracionais aí, acredita Iara, que fala em amadurecimento dela e de seus colegas, pela idade. Anelis aponta algo além disso:

— É um questionamento do que é público e privado, que a virtualidade trouxe para minha geração. Para a geração de minha mãe, havia uma divisão clara. Ela, um dia, depois de ler um poema sobre a menina que compra um vibrador, me disse: “Filha, gosto muito do seu blog, mas queria saber se essas personagens são você, se está tudo bem no seu casamento” (risos). Tá tudo bem, mãe, é um pouco eu e um pouco não, um pouco histórias que ouço.

Sem o apoio da melodia (canção) ou das cores e formas (artes visuais), os poemas dependem dos vocábulos para determinar sua “temperatura”, lembra Iara, que pensa em publicar um livro com sua produção erótica em 2014.

— É o que dá o tom, a escolha da palavra, se vai ser “transa”, “trepada”… Alguns poemas são mais líricos, outros, mais esporrentos (risos).

A internet está atrelada ao fenômeno. Anelis publica seus poemas num blog (“Ali posso fazer um estudo e exercício de linguagem, diferente da canção, sem o peso do livro”, explica). A tecnologia é tematizada no clipe de “A gente diz que tá aprendendo a amar” (“Mas nessa idade é só desculpa para ver o outro sem roupa”, completa o refrão), da banda Hidrocor. O filme tem a participação do ator pornô Rogê Ferro e mostra um jovem na casa dos 20 anos gravando o sexo com seu iPhone:

— Tem a ver com nosso tempo, com esses vídeos que estão vazando de pessoas transando — diz Marcelo Perdido, ex-vocalista da banda, que anunciou seu fim há poucos dias. — Antes esse erotismo ficava restrito a quem tinha equipamento, hoje um celular faz filmes, o erotismo entrou no cotidiano. E as mídias sociais ajudam.

Dinucci começou seus desenhos eróticos para divulgar no Facebook e no Instagram shows de suas bandas Metá Metá e Passo Torto na Virada Cultural de São Paulo. Buscava uma alternativa mais quente às filipetas virtuais, para ele banalizadas.

— Pensei num desenho meio sacana, um cara e uma mulher em cima dele, dizendo que só continuaria se ele levasse ela aos shows. Bombou. comecei a brincar com a sacanagem, algo que já vinha querendo explorar como tema.

Dinucci tem planos de fazer seus desenhos — carregados de lirismo e de uma espécie de realismo fantasioso — transporem as fronteiras da internet. Ele pretende editá-los numa caixa, “Almanaque das bestas”, com serigrafias numeradas. Outra ideia é publicar sua série mais recente, com quadrinhos eróticos, como HQ.

Curiosamente, é fora da música (clipes, desenhos, poemas) que os compositores têm exercido de forma mais clara seu viés erótico.

— A tradição do sexo na música brasileira passa pelo duplo sentido, pelo humor. Isso acaba levando o artista a usar outro tipo de linguagem para abordar o tema — conta Dinucci, que vê com olhar crítico o que chama de estereótipos da arte erótica. — Acaba sendo aquela coisa de desenhar umas gostosas. Eu busco uma abordagem mais feminina, mais sensitiva que visual, diferente do filme pornô. Queria poder achar um pouco mais disso na música.

Pethit vai além da questão estética e relaciona seu clipe e o trabalho de seus colegas como uma afirmação política:

— Por mais que o capitalismo possa englobar o erotismo como fetiche, transformar o desejo em objeto de consumo, ele é sempre fugidio à lei e às regras. Um produto marginal, enfim. Neste ano, com tudo isso que aconteceu no campo político, talvez o erotismo seja a salvação, o único caminho do discurso estético. Há um novo conservadorismo na política, e o erotismo cresce também como uma reação a isso.

Fonte: O Globo

 

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