Polícia só abre inquérito para investigar um a cada 23 roubos registrados no Rio

O bar Bom Gourmet, na Tijuca: apesar de o assalto ter sido violento, com o uso de fuzis, o inquérito nem foi aberto
O bar Bom Gourmet, na Tijuca: apesar de o assalto ter sido violento, com o uso de fuzis, o inquérito nem foi aberto Foto: Bárbara Lopes
Rafael Soares

Já passava da meia-noite de 7 de abril do ano passado e o expediente havia acabado no bar Bom Gourmet, na Rua Morais e Silva, na Tijuca. Quatro funcionários e o proprietário fechavam o caixa e limpavam o salão, já vazio, quando cinco homens armados de fuzis entraram e anunciaram um assalto. Cerca de R$ 300 do caixa, um notebook, celulares e mochilas dos funcionários foram levados.

A ação foi flagrada pelas câmeras de segurança de alta resolução do bar, que mostraram, inclusive, os rostos dos criminosos. Na mesma madrugada, a gerente e o dono do bar foram à 18ª DP (Praça da Bandeira) registrar a ocorrência. Mas até hoje a delegacia sequer abriu um inquérito para investigar o caso.

O roubo é somente um dos mais de 700 mil registrados a partir de 2015 em delegacias de todo o estado que nunca foram alvo de investigação formal da polícia. Um levantamento exclusivo do EXTRA, com base em dados obtidos por meio de Lei de Acesso à Informação junto à Polícia Civil, revela que só 4% dos roubos registrados no estado, de janeiro de 2015 a agosto deste ano, levaram à abertura de inquéritos policiais.

No período, aconteceram 745.901 roubos no Rio, segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP). Só 31.682 deram origem a inquéritos — que podem ter sido abertos após prisões em flagrante ou a partir de determinação dos delegados. É como se apenas um em cada 23 roubos no estado fosse apurado de fato.

— Levamos à delegacia, num pendrive, o vídeo do roubo em alta resolução. Até imprimimos as imagens dos homens, que não usavam toucas. Um dos celulares levados também tinha GPS. Dava para saber até por onde passaram os criminosos depois do crime — conta uma funcionária do bar na Tijuca.

Redução ano a ano

Desde 2015, vem diminuindo ano a ano a proporção de inquéritos abertos em relação ao total de roubos. Há três anos, 5,6% dos roubos geraram inquéritos. Em 2016, foram 4,1%. Em 2017, 3,8%. De janeiro a outubro deste ano, a relação caiu para 3,7% — 5.932 inquéritos para 158.750 roubos.

Delegacias da capital e da Baixada Fluminense ostentam as mais baixas proporções de inquéritos abertos entre as unidades de todo o estado. Na capital, 3,6% dos casos geraram inquéritos, somando os abertos por todas as delegacias distritais e os originados por prisões em flagrante registradas na Central de Garantias (CG-Norte) e na Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), do Centro.

Na Baixada, 3,7% dos casos desde 2015 levaram a investigações formais. A delegacia com a pior porcentagem na região é a 57ª DP (Nilópolis), em que só 0,9% dos roubos levou a inquéritos. Na capital, não é possível fazer o cálculo por unidade porque, diferentemente do que ocorre na Baixada, as delegacias distritais não fazem todos os registros de flagrantes — já que existem a CG-Norte, responsável por casos na Zona Norte da cidade, e a DPCA, que faz flagrantes de crimes cometidos por menores de idade. No interior, 11% dos crimes de roubo terminaram em inquérito, no período.

Quando uma pessoa vai à delegacia relatar que foi vítima de crime, é elaborado o registro de ocorrência, que fica armazenado no sistema da Polícia Civil. No entanto, só o registro não garante que o caso seja de fato investigado, como explica o delegado Fernando Veloso, que já foi chefe de Polícia.

— Antes da instauração do inquérito, a polícia não exerce seu poder de polícia. Sem inquérito, não há como fazer conduções, intimações, quebras de sigilo. Não há investigação efetiva — diz Veloso.

Sem o inquérito, o crime pode ter uma averiguação prévia, com a tomada de depoimentos de testemunhas e análise de câmeras de segurança, por exemplo. Mas é só a partir de sua instauração formal que as investigações se aprofundam e o autor pode ser incriminado.

— Na prática, o que acontece nas delegacias é uma filtragem prévia dos casos, que são, de fato, investigados, pela incapacidade de a polícia de responder à demanda da população — afirma Veloso.

Procurada, a Polícia Civil alegou que “crimes patrimoniais apresentam grau maior de dificuldade, uma vez que, na maioria dos casos, não há vinculo entre autor e vítima”. Segundo a corporação, “as informações que chegam às delegacias são muitas vezes incipientes e com poucos dados que permitam instauração de inquérito”. Sobre o caso do bar assaltado na Tijuca, a polícia afirma que “todas as diligências possíveis foram realizadas” e não houve abertura de inquérito “por falta de elementos”.

Opinião de especialistas

Fernando Veloso diz que a incapacidade da Polícia Civil para suprir a demanda da população acaba gerando uma filtragem prévia dos casos que chegam às delegacias. Para ele, inquéritos deveriam ser abertos sempre que há violência contra a vítima.

— No Brasil, não existem regras claras com critérios objetivos para essa seleção sobre quais inquéritos devem ser abertos. O que prevalece é uma decisão subjetiva do delegado. Na minha opinião, inquéritos deveriam ser abertos sempre que há situações de violência. A polícia não pode dar as costas para a vítima — afirma Veloso.

Para a delegada Martha Rocha, que também foi chefe de Polícia e atualmente é deputada estadual (PDT), o número reduzido de investigações é um reflexo do déficit de pessoal da corporação:

— Cada agente tem uma quantidade enorme de inquéritos para cuidar. Em 2014, eram 11 mil agentes. Hoje, são 9 mil. E a quantidade de casos aumentou.

Segundo a delegada, a maior parte de casos de roubos não possibilita que a vítima detalhe as circunstâncias do crime na delegacia.

— Na maioria das vezes, são roubos de rua, em que a vítima não tem condição de apontar características do autor. A abertura de inquérito fica inviabilizada — completa.

Já o sociólogo e pesquisador do Laboratório de Análise da Violência (LAV) da Uerj Ignacio Cano defende que a Polícia Civil deveria ter critérios claros para a abertura de inquéritos. Para Cano, a falta deles abre espaço para o delegado decidir quais casos serão investigados.

— Na minha visão, os critérios que os delegados usam para abrir inquéritos são subjetivos. Podem ser os valores envolvidos, a visibilidade que o caso pode dar ou até, o que acho mais provável na maioria dos casos, a possibilidade de resolução do crime. Quando um caso é mais fácil de ser resolvido, abre-se inquérito. Critérios objetivos são importantes porque os atuais não são justos — afirma Cano.

A nota da Polícia Civil, na íntegra

“Os crimes patrimoniais, como roubo e furto, apresentam um grau maior de dificuldade para a investigação, uma vez que na maioria dos casos não há nenhum vinculo entre o autor e a vítima. Nos crimes de roubo e furto a escolha da vítima é, em regra, aleatória e ocorre quando o criminoso identifica uma pessoa vulnerável e que ostente algum bem de seu interesse. Desta forma, as informações que chegam até as unidades policiais relacionadas a esses crimes são muitas vezes insipientes e com poucos dados que permitam a instauração de um inquérito. Cabe esclarecer que em todos os casos são instaurados procedimento investigativos (VPI) em busca de informações que permitam a instauração do inquérito.

Vale ressaltar ainda que devido as condições do estado, a Polícia Civil vem atuando há alguns anos com o efetivo menor que o necessário para o trabalho de polícia judiciária, situação que tem sido tratada pela Intervenção Federal. Com isto, as ações são direcionadas para que a Polícia Civil atue buscando a maior probabilidade de êxito nas investigações.

Sobre o caso registrado na 18ª DP (Praça da Bandeira), todas as diligências possíveis foram realizadas. As imagens foram analisadas e testemunhas ouvidas, mas nenhum autor foi identificado. Por falta de elementos o procedimento investigativo foi suspenso até a obtenção de novas informações.”

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *