A escritora que descobriu que seu pai era o ‘braço direito’ de Manson

Claire Vaye Watkins estreou com um livro de contos em que encara sua identidade

Momento da prisão de Charles Manson (à esquerda) e alguns de seus seguidores.
Momento da prisão de Charles Manson (à esquerda) e alguns de seus seguidores.CONTRA EDITORIAL

Claire Vaye Watkins só soube da fama criminosa de seu pai e de sua penetração no imaginário coletivo da geração dos anos 1960 nos Estados Unidos quando era tarde demais. Ao descobrir, já fazia quatro anos que ele estava debaixo da terra. A pequena Claire Vaye Watkins (Bishop, Califórnia, 1984) cresceu convencida de que Paul Watkins, seu pai, que em outra época tinha sido o braço direito do assassino Charles Manson, era um pai comum. Um bom pai que simplesmente teve má sorte e morreu antes do tempo. Mas ninguém pode estar a salvo de tal maldição para sempre. Claire, cujo surpreendente livro de contos Battleborn, de 2012, acaba de ser lançado em espanhol com o título de Nevada, tinha 10 anos quando sua mãe lhe deu o titânico Manson: Retrato de um Crime Repugnante (Helter Skelter, no original em inglês), ensaio de Vincent Bugliosi sobre os crimes da família Manson: ao consultar o índice, descobriu que o nome de seu pai era mencionado em 36 páginas.

Claire Vaye Watkins.
Claire Vaye Watkins.

Alguém tinha hostilizado sua irmã Lise no colégio. Tinham dito a ela que era filha de um assassino e a menina, então com nove anos, chegou chorando em casa e quis saber se era verdade. A primeira coisa que fez foi contar à sua irmã Claire, que olhou o recorte de jornal que a garota lhe deu e viu seu pai, de quem tinha uma lembrança imprecisa, muito jovem em uma fotografia com Charles Manson. “Naquela época, não sabíamos quem era Charles Manson. Mas seu nome dava medo. Estava associado a algo diabólico”, assinalou em um artigo no The Guardian. Correu para sua mãe. Seus pés descalços golpeando o piso de madeira de sua casa em Tecopa, Califórnia, em pleno Vale da Morte, no deserto de Mojave, em Nevada. Contou para ela. Sua mãe lhe passou Manson: Retrato de um Crime Repugnante. O resto, como se costuma dizer, é história.

Uma história que poderia começar de muitas maneiras, como o conto com que abre seu livro, Nevada, um texto mutante intitulado Ghosts, Cowboys. Nele, recorda aquela enésima vez em que − drogada, no quarto da residência universitária − contou a história de como, em um primeiro momento, seu pai foi seduzido por Manson e depois, quando viu que a coisa era séria e que alguém estava perdendo a cabeça com a canção Helter Skelter, dos Beatles, voltou atrás e fugiu, para, uma vez descobertos os primeiros cadáveres, acabar testemunhando contra o cara que tinha sido seu Jesus Cristo particular durante muito tempo. (Helter Skelter passou a fazer parte do universo de canções malditas quando Manson revelou que se inspirou nela para planejar os assassinatos da mulher de Roman PolanskiSharon Tate, e seus convidados). Claire Vaye Watkins poderia lembrar também o que ocorreu no dia em que descobriu que seu pai tinha feito sexo oral em Charlie (como ele costumava chamá-lo). Os pais faziam esse tipo de coisas com assassinos?

Também poderia começar pelo momento em que se mudou para Los Angeles e passou dia após dia dizendo a si mesma que, embora não lhe custasse nada, fosse só questão de entrar no carro e dirigir, jamais iria ao rancho Spahn, lar da família Manson e um dos cenários do monumental Era uma vez em… Hollywood, o último filme de Quentin Tarantino. Aquele lugar para onde seu pai foi ao subir na demoníaca van do grupo, convencido de que aquele pessoal só queria se divertir, transar muito e fazer música.

Talvez com essa intenção, com a intenção de invocar o fantasma de seu pai para afastá-lo de seu caminho definitivamente, Watkins dá forma ao primeiro conto do livro, o conto dos mil inícios. Um conto que é como uma boneca russa que revela aquilo de que nunca poderá fugir − que é filha de Paul Watkins, com tudo o que isso significa − em diferentes momentos de sua vida, da vida de seu pai e da vida dos que o cercavam, como o velho e cego George, que Brad Pitt visita em Era uma vez em… Hollywood.

Ao mesmo tempo, a escritora traça uma história do lugar remoto do mundo ao qual vai dedicar o livro. Ghosts, Cowboys é, poderíamos dizer, o mapa sentimental do que está por vir: mais nove contos, de alento cartográfico − o protagonista é, como diz o título em espanhol da coleção, o Estado de Nevada e sua peculiar e cruel paisagem − e árido; um cruel e selvagem desencaixe existencial; 10 peças de tom gótico, como o de Joy Williams, weird, mas também visceral e maldito.

“Meu pai não matou ninguém. E não é nenhum herói. Esta não é uma história desse tipo”, diz a narradora de Ghosts, Cowboys, a própria Claire Vaye Watkins. E a frase poderia se estender para os outros protagonistas do volume: garotas condenadas a ser brutalmente usadas e descartadas (Rondine al Nido), pessoas que não estão onde deveriam (The Past Perfect, the Past Continuous, the Simple Past) e casais que, como nos contos de Raymond Carver e Richard Ford, discutem até ficar despedaçados (Wish You Were Here).

Por esta coleção de contos, que foi seguida por um romance apocalíptico (Gold Fame Citrus) ambientado no deserto que ela não pode evitar habitar, no deserto onde nasceu e no qual viverá para sempre em sua cabeça, Watkins recebeu, entre outros, o prêmio Dylan Thomas. Ela agradeceria a seu pai e até a Charlie, diz, se pudesse. Porque, como lhe recorda a voz de Paul Watkins em seu iPod − de uma velha gravação que seu pai enviou, já doente, a um tal Nick em 1988 −, “não há nada de errado em não saber quem você é”.

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