Cubanos que desertaram da delegação no Pan de 2007 contam suas histórias

O boxeador Guillermo Rigondeaux Foto: Arquivo Pessoal
Marjoriê Cristine

Do avião, à medida que se aproximavam, o Rio de Janeiro se tornava ainda mais maravilhoso para quatro atletas. Dispostos a abandonar Cuba, comandada pelo regime de Fidel Castro, o técnico de ginástica artística Lázaro Lamelas (que chegou a disputar a Olimpíada de Sydney-2000 como atleta), os boxeadores Guillermo Rigondeaux e Erislandy Lara e o jogador de handebol Rafael Capote viam nos Jogos Pan-Americanos de 2007 a porta da esperança para uma nova vida.

Da Vila Olímpica, na Barra, para a liberdade, os quatro traçavam um novo futuro — com ou sem medalha, mas longe da ilha. Pobre, com salários pífios, economia debilitada e sob o regime ditatorial há quase 60 anos, Cuba era, aos olhos destes quatro, um rio de problemas.

— É um país que ficou nos anos 1950. Ver as pessoas de quem gosto em uma Cuba tão ruim economicamente… Foi muito triste ver o país deteriorado, que não vai para a frente — diz Lázaro Lamelas, o único desertor que conseguiu permanecer no Brasil nesses dez anos. — Não é culpa das pessoas. Elas são inteligentes e têm vontade. É dessa política errada e desse socialismo que não deu certo.

Lázaro Lamelas com as meninas do projeto de ginastica no Brasil
Lázaro Lamelas com as meninas do projeto de ginastica no Brasil Foto: Arquivo Pessoal

Desafio em português

Ao deixar a Vila do Pan, embarcar em um ônibus para Campinas e parar em Jaguariúna, cidades no interior de São Paulo, onde recebeu abrigo de um amigo, o técnico só pensou que precisava fugir de sua vida melancólica e triunfar longe de Cuba. Com um plano traçado antes da competição, o treinador deixou 15 anos ligados à seleção de ginástica artística para trás.

— Morar em outro país, com língua e cultura diferentes… Sabia que tinha uma chance grande de dar errado. Dez anos depois, vejo o que aconteceu na minha vida e me sinto satisfeito com a decisão — afirma Lamelas, acrescentando que faria tudo de novo, se preciso. — Não me arrependo. Foi tudo bem pensado, estudado. Como muitos amigos falam, “sou um brasileiro que nasceu em Cuba”(risos).

Com um mês e meio no Brasil, ele se apresentou à Polícia Federal e conseguiu ser aceito como refugiado. Arrumou trabalho como técnico em Americana (SP), onde reside até hoje com a mulher, à época a noiva cubana que precisou se mudar para cá. Lamelas só ganhou autorização para retornar a Cuba em janeiro de 2017, quase dez anos depois. Sequer teve a chance de se despedir do pai, que morreu em 2012.

— Deixei meus pais, irmã, sobrinhos… tudo lá. Meu pai morreu há cinco anos. Não consegui vê-lo. Pedi permissão no consulado para entrar em Cuba, mas não concederam — lamenta o treinador, que não sente vontade de voltar a morar no país. — Minha mãe está viva, veio há quatro anos ao Brasil me visitar. Depois, só a reencontrei em janeiro, quando voltei e vi um país pior do que quando saí.

Lázaro Lamelas com a mulher em Americana (SP)
Lázaro Lamelas com a mulher em Americana (SP) Foto: Arquivo Pessoal

Fã de samba, MPB e apaixonado por Caetano Veloso, Lamelas reconhece que falar português foi um desafio. Foram as novelas de sucesso, como “Paraíso tropical” e “A favorita”, da TV Globo, e telejornais da Globonews que o ajudaram a entender a língua. E também a pedir seu prato favorito no Brasil: strogonoff, de frango e de carne.

— Eu via a TV com legenda para entender o que falavam. As novelas da época me ajudaram demais. Elas fazem sucesso em Cuba também — conta o treinador, que trabalha com meninas de 9 a 15 anos no interior de São Paulo. — Amo o Brasil. Comer strogonoff, brigadeiro… Até visitei a escola de samba campeã, a Portela. Por isso, sou mais brasileiro do que cubano.

Promissor no handebol, Rafael Capote seguiu carreira na Europa após a deserção. Naturalizou-se qatari e voltou ao Rio em 2016, para disputar os Jogos Olímpicos. O atleta de 29 anos é atleta do El Jaish, de Doha. Atualmente, recupera-se de uma grave lesão na sexta vértebra cervical, sofrida em março.

Rafael Capote é hoje naturalizado qatari
Rafael Capote é hoje naturalizado qatari Foto: MARWAN NAAMANI / AFP
Rafael Capote há dez anos, quando desertou e tinha apenas 19 anos - 16.07.2007
Rafael Capote há dez anos, quando desertou e tinha apenas 19 anos – 16.07.2007 Foto: Reprodução de TV / Agência O Globo

Futuro nos Estados Unidos

O ringue sempre foi o refúgio e o sonho de Guillermo Rigondeaux. Bicampeão olímpico em Sydney-2000 e Atenas-2004, o cubano só veio ao Rio em 2007 para escapar. Era a oportunidade de buscar o profissionalismo longe de seu país. Desertou ao lado de Erislandy Lara, mas ambos foram descobertos e pressionados pelo governo a voltar. Dois anos depois, em Cuba, eles fugiram para os Estados Unidos e nunca mais voltaram.

— A chance apareceu e peguei. Infelizmente, nada aconteceu da forma mais adequada. Mas não me arrependo — revela Rigondeaux. — Para alcançar meu sonho de ser profissional, precisava fazer algo.

Erislandy Lara e Guillermo Rigondeaux (D) em Miami, nos EUA
Erislandy Lara e Guillermo Rigondeaux (D) em Miami, nos EUA Foto: Arquivo Pessoal

A possibilidade de deserção começou a rondar os pensamentos de Rigondeaux após a segunda medalha de ouro. Já sem motivação para continuar no boxe olímpico, ele resolveu buscar a consagração no esporte profissional, sem saber se era isso mesmo que o faria feliz. Erislandy Lara seguiu o mesmo caminho.

— Naquela época, não tinha resposta para essa dúvida. Hoje, posso dizer que as medalhas foram mais gratificantes do que o cinturão. Embora, com o segundo, eu tenha conseguido ganhar dinheiro — reconhece Rigondeaux.

Amigo de Vitor Belfort

Aos 36 anos, El Chacal, como é conhecido, mora em Miami, na Flórida, e é o atual campeão linear dos supergalos (até 55,3kg), tendo unificado os títulos da Associação Mundial de Boxe (WBA) e da Organização Mundial de Boxe (WBO). Deixou um filho em Cuba e nunca mais o viu. Casou-se novamente e construiu uma nova família:

— Lamentavelmente, nunca mais voltei. Nunca tive a oportunidade, mas adoraria. Não deixei Cuba com a intenção de nunca mais retornar. Só busquei um futuro melhor.

Desde o Pan, Rigondeaux não veio mais ao Brasil. Mas já recebeu vários convites do amigo Vitor Belfort, ex-campeão do UFC e que treinava na mesma academia que o boxeador cubano:

— Eu treinei com este grande campeão brasileiro de MMA. Somos bons amigos. Ele sempre me convidou para visitar sua casa no Rio, mas não apareceu oportunidade para voltar.

Pugilistas cubanos Erislandy Lara (E) e Guillermo Rigondeaux - 02.07.2007
Pugilistas cubanos Erislandy L

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