Documento mostra que ocultação de crimes franquistas começou já em 1943

“A Guerra Civil espanhola foi a primeira batalha da Segunda Guerra Mundial.” Para o jurista Álvarez del Vayo, o conflito que se estendeu de 1936 a 1939 encenou o primeiro ato de uma guerra já moderna e mundializada: a disputa entre fascismo e antifascismo. Em 1º de abril de 1939, após declarar “A guerra acabou”, o general Francisco Franco — conspirador militar que organizou o massacre de mais de 3 mil trabalhadores da Comuna de Astúrias em 1934 — deu início à maior onda de repressão política da história espanhola.

Reprodução/”El Franquismo”, de Stanley G. Payne

Repressão e encarceramento em massa prosseguem ao final da Guerra Civil, em 1939, que registrou o auge das detenções políticas

Desde a eclosão do golpe militar antirrepublicano em julho de 1936, a coalizão de falangistas, católicos e conservadores passou a legislar na zona nacionalista sob o seu comando. Um mês depois, este autoproclamado Movimento Libertador, lançado do Marrocos espanhol, substituiria a bandeira republicana e colocaria no lugar o emblema anterior à queda da monarquia.

[Crianças em saudação fascista diante de retrato de Franco, “O primeiro vencedor no mundo do bolchevismo no campo de batalha” ]

Em setembro desse mesmo ano, vetaria a reforma agrária, devolvendo aos proprietários suas terras e direitos. Sem esperar o fim da guerra civil, seu líder Franco é proclamado “Generalíssimo”, “chefe do governo do Estado”. Um ano e meio depois, receberia o “poder supremo de ditar normas jurídicas de caráter geral” e editaria uma lei que lhe permitiria perseguir todos os opositores do golpe militar. Detalhe: desde 1934.

Foi o que se fez com “espartano acento”. Política e juridicamente, responsabilizou-se até mesmo a “ação passiva” daqueles que “produziram ou facilitaram a criminalidade” da Frente Popular – a coligação de esquerda antifascista que atingiu, pela via eleitoral, maioria de deputados em fins de 1935. Em 1943, o “Generalíssimo” nomeou ministro da Justiça o político e jurista catalão Eduardo Aunós (1884-1967). Tão logo assumiu, Aunós, representando o falangismo católico, se encarregou de redigir e difundir um documento intitulado Causa Geral. A dominação vermelha na Espanha. O livreto pretendia demonstrar a “criminalidade” da Frente Popular, buscando documentar o que se assinala como uma “verdade histórica indiscutível”, fruto da “investigação realizada pelos Magistrados do Ministério Público”. (clique aqui para ler a íntegra do documento, em espanhol)

[Eduardo Aunós, no exílio durante toda II República, assumiu o Ministério da Justiça do Estado Novo franquista em 1943, permanecendo no cargo até 1945]

Criada por decreto em 1940, a chamada “Causa Geral” atribuía ao Ministério Público espanhol poderes para fixar, investigar e reprimir “a atividade criminosa das forças subversivas que em 1936 atentaram abertamente contra a existência dos valores da Pátria”. Tais forças da Frente Popular, prossegue o documento, praticaram “uma verdadeira tirania por detrás da máscara da legalidade”. Daí o levante nacional resultar “inevitável”, tomado como “legítimo movimento de defesa” diante da “onda de crime e sangue aberta pelo marxismo e seus aliados”, aparecendo por décadas, no discurso oficial, como “razão suprema de um povo em risco de aniquilamento”.

Conforme se explicita textualmente, a “Causa Geral” somente exerceria suas funções investigadoras “naquela parte do território espanhol que esteve submetida à dominação vermelha”, a “zona marxista”, sob “o terror por toda a Espanha submetida ao marxismo”. Claramente, vê-se que o ímpeto persecutório é seletivo: permaneceria impune o chamado “terror branco”, largamente praticado na zona militarizada sob o controle dos nacionalistas. Na época, o cenário era de “duas Espanhas” cindidas pela guerra civil. Dessa forma, o aparelho estatal franquista somente procurou, obviamente, averiguar as violações de direitos humanos cometidas na zona republicana. Ao outro lado — à Frente Popular —, restavam a brutal criminalização de suas atividades e a fabricação de provas judiciárias que subsidiassem a repressão e os expurgos políticos do pós-guerra civil.

[Cemitério clandestino de Granada (1966), tomada como zona nacionalista pelo “terror branco”, até hoje não investigado pelo Estado espanhol]

 

 

Até hoje, investigações de um lado só

Mais adiante, o documento Causa Geral. A dominação vermelha na Espanha mapeia em diversos capítulos toda a atuação das forças de resistência armada contra a ditadura franquista. Em “Perseguições religiosas”, por exemplo, o livro elenca nomes e fotos dos mártires mortos pelo “terror vermelho”, advertindo que, na zona marxista, simultaneamente “a Religião é perseguida de morte e a propriedade é socializada ou simplesmente espoliada”. Estas explosões sociais, muito antes inclusive dos incêndios de igrejas e conventos em maio de 1931, eram nutridas por um secular anticlericalismo de um país em que a Igreja, aos olhos das massas camponesas e operárias, encarnava toda a tradição reacionária dos poderosos e seus asseclas.

[Causa General. La Dominación Roja en España. Avance de la Información Instruída por el Ministério Público. Prólogo del Excmo. Ministro de Justicia, Eduardo Aunós”, dezembro de 1943]

A política do jurista de exceção Eduardo Aunós, enfim, negava de modo manipulatório que realmente tivesse ocorrido alguma crueldade “no campo nacional”, “nem inclusive em meio do terrível fragor da contenda”. Sua tese, contudo, não resiste a uma análise mais criteriosa: “as próprias autoridades nacionalistas não publicaram qualquer estatística das mortes a eles atribuídas” na zona nacionalista, durante a guerra civil, já que “a justificativa legal para todas” as suas execuções sumárias “foi simplesmente o estado de guerra que havia sido proclamado” nos dias de golpe militar em julho de 1936, segundo escreve o historiador britânico Hugh Thomas em A guerra civil espanhola.

A impunidade dos vitoriosos com o golpe militar de 1936 pelos crimes de lesa humanidade — conforme reconhecidos pela mais coetânea tendência do direito internacional público —, que praticaram na zona nacionalista durante a guerra civil e na longeva ditadura, até 1975, permanecerá enquanto perdurar a lei de anistia de 1977. Espécie de lei “do ponto final”, a Espanha recentemente foi mais de uma vez incitada pela ONU a constituir sua Comissão da Verdade.

A zona republicana já foi detalhadamente esquadrinhada pelo informe do Ministério Público e pela máquina pública franquista. A nacionalista, que ecoa todo o terrorismo de Estado praticado na Espanha, até hoje, não.

Reprodução/”Causa General. La Dominación Roja en España”

“Vermelhos” posando para foto com trajes saqueados da Igreja, não longe de ser a maior latifundiária do país

Fonte: Ópera Mundi

 
 
 
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