Michelangelo pintou o teto da Capela Sistina — e ele odiou cada segundo
A Capela Sistina abriga algumas das principais obras de Michelangelo, mas o gênio renascentista teria pintado os afrescos contra a própria vontade
A Capela Sistina, um dos monumentos mais icônicos do Vaticano, exibe em seu teto impressionantes cenas bíblicas pintadas por Michelangelo. O que muitas pessoas não sabem, porém, é que essas obras foram feitas contra a vontade do artista.
Segundo a historiadora americana Ada Palmer, Michelangelo nunca quis pintar aquele teto monumental — na verdade, ele “odiava” pintar e se via, acima de tudo, como escultor. Ele era alguém que “falava a língua das rochas”, como disse Palmer ao podcast History Extra, da BBC.
Punição
O italiano trabalhou na Capela Sistina entre 1508 e 1512, sob ordem do Papa Júlio II, um pontífice descrito por Palmer como obsessivo e autoritário.
A historiadora afirma que a tarefa de pintar o teto foi, na verdade, uma forma de punição imposta ao artista, que havia tentado escapar de Roma para retornar à sua cidade natal, Florença.
“Isso foi uma punição porque ele fugiu do papa perseguidor. E o papa perseguidor disse: ‘Vou punir esse homem, sei que ele só quer esculpir, então vou fazê-lo pintar por dois anos'”, contou, de acordo com o The Telegraph.
Júlio II, ao descobrir a fuga, teria ordenado que soldados o capturassem e o trouxessem de volta à força. Diante da resistência da milícia florentina, o confronto foi inevitável, mas o artista acabou cedendo à pressão e retornando à capital.
Tumba de Júlio II
Segundo Palmer, o castigo do papa foi claro: se Michelangelo queria esculpir, ele o forçaria a fazer justamente o oposto. “Ele [Michelangelo] nunca quis pintar a estúpida Capela Sistina”, disse ela, com base em cartas e registros da época. A punição teria vindo após um conflito maior relacionado ao projeto de uma tumba grandiosa que Júlio II encomendara ao artista.
Essa tumba, pensada como um monumento colossal com cerca de 30 esculturas de prisioneiros acorrentados sustentando o túmulo do papa guerreiro, nunca foi concluída. Problemas logísticos, como a ausência de mármore e as constantes mudanças de planos do próprio Júlio II, deixaram Michelangelo cada vez mais frustrado.
Notoriedade
Antes disso, Michelangelo já havia conquistado notoriedade em Roma com a escultura da Pietà, criada quando ele tinha pouco mais de vinte anos. Mas mesmo esse sucesso não foi suficiente para mantê-lo motivado na capital, que ele dizia detestar. “Ele queria apenas voltar para casa e esculpir”, resume Palmer.
“Michelangelo foi contratado para fazer esta tumba impossível e então as coisas deram errado — o mármore não estava lá. O Papa continuou sendo um idiota, ficou cada vez mais frustrado.”
O artista, que viveu até os 88 anos, teria tido, nas palavras da historiadora, uma “vida muito longa e miserável”.
Soneto
Em 1509, enquanto trabalhava na pintura da capela, Michelangelo escreveu um soneto endereçado ao amigo Giovanni da Pistoia, no qual desabafava sobre os sofrimentos físicos e mentais causados pela tarefa que lhe fora imposta.
Entre as queixas do artista estavam o aparecimento de um bócio (uma glândula tireoide aumentada), o desalinhamento doloroso de sua coluna, câimbras constantes nas coxas, dores persistentes nas nádegas por conta do esforço prolongado e a sensação de tensão e torção no peito.
A posição que era obrigado a manter — sempre de pé, com os braços erguidos acima da cabeça, inclinado para trás — foi sua maior inimiga. Mas o sofrimento não se limitava ao físico: isolado no alto dos andaimes, Michelangelo também enfrentava a solidão e os pensamentos que o atormentavam, como ele próprio revela nos versos do soneto.
Confira a seguir:
Já ganhei bócio por causa dessa tortura,
curvado aqui como um gato na Lombardia
(ou em qualquer outro lugar onde a água estagnada seja venenosa).
Meu estômago está esmagado sob meu queixo, minha barba
aponta para o céu, meu cérebro está esmagado em um caixão,
meu peito se contorce como o de uma harpia. Meu pincel,
acima de mim o tempo todo, pinga tinta,
então meu rosto vira um belo chão para excrementos!
Minhas ancas estão esmagando minhas entranhas,
minha pobre bunda se esforça para funcionar como contrapeso,
cada gesto que faço é cego e sem objetivo.
Minha pele fica solta abaixo de mim, minha coluna está
toda emaranhada por se dobrar sobre si mesma.
Estou tenso como um arco sírio.
Porque estou preso assim, meus pensamentos
são uma bobagem maluca e pérfida:
qualquer um atira mal com uma zarabatana torta.
Minha pintura está morta.
Defenda isso para mim, Giovanni, proteja minha honra.
Não estou no lugar certo — não sou pintor”.
Giovanna Gomes é jornalista e estudante de História pela USP. Gosta de escrever sobre arte, arqueologia e tudo que diz repeito à cultura e à história do ser humano.