Programa de armazenamento de água no Nordeste atinge pior patamar em 2021
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Programa de armazenamento de água no Nordeste atinge pior patamar em 2021

O agricultor Joel Santos, de 26 anos, é nascido e criado na comunidade  quilombola de Cajá dos Negros, em Batalha, uma das cidades mais castigadas pela desertificação em Alagoas. Nas últimas décadas, ele viu seus vizinhos serem contemplados por construção de cisternas, através de um programa federal criado em 2003, que já entregou 1,3 milhão de cisternas, uma das maiores necessidades do povo sertanejo por facilitar o armazenamento da água e enfrentamento dos períodos de seca, no semiárido brasileiro.

Mas, há quatro anos, Santos diz que as obras cessaram na sua vila, e, por isso, ele precisa sair de casa diariamente com dois baldes atrás de água emprestada dos vizinhos. Em 2021, o governo federal estima entregar 3 mil cisternas, o menor número da história, superando o recorde negativo que já havia sido marcado em 2020.

“Sem as cisternas a gente tem que ficar pedindo água pra beber nas casas dos outros, pego uma, duas vezes, mas se pedir demais já fazem cara feia. E agora está ainda mais difícil, porque as barragens estão secando. Esse ano está ruim de chuva. A gente só planta no inverno, que é quando chove, mas esse ano choveu muito pouco”, explica Joel Santos, que vive da plantação de verduras e cita que só as 10 casas mais recentes da comunidade, que tem cerca de 600 habitantes, ficaram sem as cisternas.

“A última vez que vieram aqui tem quatro anos. Estamos todo esse tempo esperando. A cada dois, três meses vem um carro pipa, e já furaram uns quatro poços, mas só deu água salgada por enquanto.”

Em 2003, o Programa Cisternas foi lançado, com 6.603 obras no seu primeiro ano, ainda inicial, num patamar que rapidamente se elevou, para 36 mil cisternas construídas em 2004, 71 mil em 2006, até chegar a 149 mil em 2014, o recorde na série. Desde então, porém, os números vêm caindo, e, no ano passado, pela primeira vez após 2003, a quantidade não ultrapassou os 10 mil. Mas, em 2021, o número sofreu redução ainda mais drástica.

Segundo o Ministério da Cidadania, de janeiro a outubro de 2021, foram entregues 2,7 mil reservatórios, e a expectativa é concluir três mil unidades até o fim do ano, o que significa 64% a menos que os 8.310 de 2021, e 98% a menos que 2014.

Isso se explica pela redução orçamentária que o programa, que faz parte da “subfunção 306: Alimentação e Nutrição” do ministério, vem sofrendo. Até aqui, no ano, só houve R$728.739 mil em pagamentos para esse setor, valor 97% menor que os R$30 milhões pagos ano passado, que já havia sido o pior resultado da série histórica, e 99,9% menor que em 2011, quando houve o recorde de R$642 milhões pagos.

“É a desconstrução quase que completa dos investimentos e das estruturas de gestão de política pública para o setor”, resume Alexandre Pires, coordenador executivo da Articulação do Semi Árido (ASA), entidade que representa mais de 3.000 associações e movimentos rurais do semi árido e pioneira na luta pelas cisternas.

“O direito à água está dentro da agenda da segurança alimentar e as obras das cisternas reduziram a mortalidade infantil e permitiram dignidade à população, mas, lamentavelmente, o governo Bolsonaro enxerga que o programa é uma política do PT. Na verdade, é uma política do estado brasileiro, foi uma proposta da sociedade civil que o governo da época acatou. Quando Bolsonaro tenta acabar com o programa para atacar o PT, ele está impedindo que 350 mil famílias, que ainda aguardam por uma cisterna, tenham acesso a essa tecnologia.”

Em 2009, o Programa Cisternas recebeu o Prêmio Sementes, da ONU, e, em 2017, o “Future Policy Award” (Política para o Futuro), da World Future Council, em cooperação com a Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertificação.

As obras são divididas entre cisternas para consumo das famílias, que têm em média capacidade para 16 mil litros, e as unidades para produção agrícola, maiores, de 52 mil litros. Desde 2003, foram erguidas 1.092 milhão da cisterna menor e 202 mil do segundo tipo. Segundo a ASA, a demanda atual no semiárido é de 343 mil cisternas para consumo humano, o que significa necessidade de investimentos de aproximadamente R$1,2 bilhão; e de 797 mil cisternas para produção, o que custaria cerca de R$12,35 bi.

O Ministério da Cidadania alega que a pandemia e a consequente crise econômica exigiram readequação do orçamento público. Mas os dados mostram que antes mesmo do advindo da Covid-19 os empenhos para as ações no semiárido já haviam sido reduzidos. O orçamento de 2020, que foi elaborado no fim de 2019, previa gastos de R$71,8 milhões para o Programa de Cisternas, número 92,2% menor que 2012, e 58% menor que em 2018, último ano do governo Temer, que já havia realizado cortes. Já os pagamentos do ano passado somaram apenas R$22,5 milhões, o menor da série histórica, ou seja, menos de um terço do orçamento previsto foi utilizado.

Pires explica que as entidades tentaram, desde o início do atual governo, o diálogo para melhoria do orçamento. Mas ele lembra que no dia de sua posse, Jair Bolsonaro baixou decreto extinguindo centenas de conselhos, dentre eles, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), órgão com integrantes da sociedade civil que participava da elaboração e proposição de políticas de segurança alimentar, o que ajudava na definição do orçamento para esses tipos de programa.

“Os espaços de contestação de interlocução foram extintos. A ASA tentou dialogar com o governo nos primeiros anos, solicitou audiências com ministros, secretários, mas não tivemos retorno. Então nossa compreensão é de que o Programa de Cisternas foi destruído pelo governo por falta de interesse. Chegamos a ouvir um integrante do governo dizer para que nós fôssemos atrás de emendas com a bancada parlamentar do Nordeste, o que demonstrava que o governo não ia priorizar o programa”, afirma Pires, que disse que a ASA não buscou emendas parlamentares por acreditar que o programa é uma obrigação do orçamento público.

Uma das agricultoras que pode dizer que viu a vida melhorar após a obra das duas cisternas na sua casa, uma para consumo, em 2005, e outra para plantação, em 2018, é Analice Andrade, de 40 anos, moradora do sítio Campo Formoso, em Esperança (PB).

“Quando casei a gente não tinha cisterna, e água de beber se pegava em sítios próximos, ou no tanque de pedra (espécie de cisterna comunitária). O dia a dia era muito difícil, mas fui contemplada e há três anos recebemos a cisterna para plantação, o que melhorou a qualidade da nossa alimentação e também minha renda. Quando chove, dá para guardar água para o ano todo”, explica Andrade, que diz que, nesse ano, precisou reduzir as plantações, por causa da falta de chuvas. “Aqui ainda tem muita gente sem cisterna. Para a gente do semi árido essa é a maior dificuldade. Tem gente que pega de vizinhos ou andam três, quatro quilômetros até os açude e barragens. Mas o mais perto daqui está bem seco.”